De José Saramago
Fiquei os últimos meses encarando vários títulos do Saramago nas estantes da biblioteca sem levar nenhum pra casa; por algum motivo que nem eu sei, queria que Ensaio Sobre a Cegueira fosse o primeiro livro a me introduzir no universo literário desse português de escrita pedante (no bom sentido) e rebuscada. Não me arrependi de ter dado o posto de pioneiro a ele, porque o livro é ótimo.

Logo o homem foi e voltou do oculista que não tinha nenhuma explicação ou diagnóstico para lhe dar. Caso estranhíssimo, os pacientes no consultório (um senhor, uma prostituta e um menininho) comentam, e também a mulher do doutor, quando ele lhe conta ao chegar em casa.
Mas era só um caso... Até a manhã seguinte, quando o doutor conta à mulher que também ficou cego... tal como o senhor do consultório, o menininho, a moça, o homem que ajudou o primeiro cego a chegar em casa, um taxista que a prostituta pegou ao sair de um motel e qualquer outra pessoa que tenha cruzado o caminho desses indivíduos.
Todos estão ficando cegos.
Todos estão ficando cegos.
Logo a epidemia se alastra por todos os lugares. Numa medida desesperada para conter o mal-branco, os cegos são postos em quarentena num prédio vigiado pelo exército, e têm que se virar como podem nas condições precárias em que são postos e com a pouca comida que recebem, cada vez mais fracionada porque o número de cegos ''infectados'' só faz crescer. Logo surgem rivalidades, confrontos, brigas, manipulação, roubos e todo tipo de violência física e psicológica (há descrições de estupros - sim, até isso - de revirar o estômago do leitor, de nojo e raiva, em determinado ponto do livro) naquela sociedade não à beira do colapso, mas já totalmente submersa nele, que se forma dentro da quarentena.
A partir de então, através dos olhos (irônico esse comentário, eu sei) de um grupo de protagonistas formado pelo oculista e sua mulher (única que não fica cega, não sabemos o porquê) e o grupo de pacientes que estavam no consultório quando o primeiro cego chegou, acompanhamos o desenrolar da catástrofe social que a epidemia da cegueira causa, ao aflorar nas pessoas isoladas em quarentena (e fora dela, quando o cenário muda) o seu lado mais animalesco, brutal e incivilizado, resultado da gana por comida (que logo vira artigo de luxo), poder e sobrevivência.
A coisa vira quase um Jogos Vorazes, sabem?
O que Saramago faz nesse livro é escrutinar sem dó a natureza humana, em sua forma mais crua e primitiva. Ele faz isso nos expondo durante o livro todo e sem nenhum pudor a propensão à selvageria que o ser humano tem em situações extremas e adversas, em momentos em que não há delegacia, tribunal ou autoridades - porque elas também cegaram e perderam o poder de controlar o que não veem - que policiem infratores ou regas e leis que delimitem diretrizes básicas para uma convivência boa e civilizada.
Ao subjugar seus personagens à cegueira, Saramago coloca todos no mesmo nível: desprotegidos, limitados, deficientes, perdidos. A partir disso, quando são todos semelhantes, quando não há bonito ou feio, rico ou pobre, vantagens ou desvantagens, quando todos estão no mesmo patamar ele delibera e evidencia o caos da natureza de todos os iguais. A mulher que vê (talvez a que mais protagoniza a história entre todos os protagonistas), esposa do oculista, acaba sendo a única testemunha ocular de toda a desordem e é ela que nos permite conhecer os acontecimentos. É curioso pensar que ela foi especialmente posta ali por Saramago, que queria nos mostrar através dela a selva que se descortinou seguindo aquela condição tão fundamental e cruel em que todos de repente se encontram. Ele vê tudo e nós ficamos aflitos junto com ela.
O que Saramago faz nesse livro é escrutinar sem dó a natureza humana, em sua forma mais crua e primitiva. Ele faz isso nos expondo durante o livro todo e sem nenhum pudor a propensão à selvageria que o ser humano tem em situações extremas e adversas, em momentos em que não há delegacia, tribunal ou autoridades - porque elas também cegaram e perderam o poder de controlar o que não veem - que policiem infratores ou regas e leis que delimitem diretrizes básicas para uma convivência boa e civilizada.
Ao subjugar seus personagens à cegueira, Saramago coloca todos no mesmo nível: desprotegidos, limitados, deficientes, perdidos. A partir disso, quando são todos semelhantes, quando não há bonito ou feio, rico ou pobre, vantagens ou desvantagens, quando todos estão no mesmo patamar ele delibera e evidencia o caos da natureza de todos os iguais. A mulher que vê (talvez a que mais protagoniza a história entre todos os protagonistas), esposa do oculista, acaba sendo a única testemunha ocular de toda a desordem e é ela que nos permite conhecer os acontecimentos. É curioso pensar que ela foi especialmente posta ali por Saramago, que queria nos mostrar através dela a selva que se descortinou seguindo aquela condição tão fundamental e cruel em que todos de repente se encontram. Ele vê tudo e nós ficamos aflitos junto com ela.
''Os olhos nublaram-se-lhe, Vou cegar, pensou, mas logo compreendeu que ainda não ia ser desta vez, eram só lágrimas o que lhe cobria a visão, lágrimas como nunca as tinha chorado em toda a sua vida [...]''
Agora que transcrevi aqui uma citação, lembro que outra coisa a mencionar, um detalhe técnico, é o formato da narrativa, pelo que sei exclusivo do Saramago: não há traço ou aspas que denote os diálogos dos personagens, separando-os do resto da narrativa; como ficará visível no trecho escrito abaixo, no fim da postagem, e se pode notar um pouco no de cima, é tudo muito junto e misturado, e a maior diferenciação que temos são letras maiúsculas esporádicas aqui e ali. A pontuação também é bem diferente (não há pontos de exclamação e interrogação, por exemplo) a princípio e pode confundir e incomodar (quando estava nas primeiras páginas, pensei que ia derramar algumas lágrimas por conta disso ao longo do livro, mas nos adaptamos bem um ao outro), mas acredito que tudo isso seja pensado para dar um fluxo diferente à narrativa, um ritmo todo próprio e especial. Um jeitinho Saramago, sabe?
Vou concluir essa resenha dizendo que não é preciso ser um leitor dos mais atentos para perceber a mensagem que o autor queria passar, especialmente porque ele a faz clara e evidente nos últimos trechos do livro (e isso não é um spoiler), de uma maneira que chega a nos fazer sorrir, como quem finalmente percebe o grande significado por trás de algo importante (pelo menos foi assim comigo).
Em uma entrevista dada para não sei que canal em não sei que veículo de mídia, Saramago conta que a ideia para o livro lhe ocorreu quando ele estava num restaurante esperando seu prato chegar e pensou ''e se todos aqui fôssemos cegos?'', questionamento ao qual ele logo teve uma resposta: ''mas já estamos todos cegos''.
No livro, a cegueira visual causa caos, violência, conflitos, selvageria, ódio, miséria, guerra e tristeza. Essas são coisas que o mal-branco só destaca, desenvolve e propicia, mas que já estavam lá, antes de todos começarem a ver tudo branco. São males que a humanidade provoca todos os dias por causa de outros tipos de cegueiras e deficiências; o mal dos que estão cegos de ódio, cegos de uma razão que não têm, cegos de orgulho e prepotência, cegos de cobiça e inveja, deficientes de amor, empatia, cuidado, afeto.
São cegueiras que transcendem qualquer debilitação física e alcançam a alma (ou qualquer outro nome que você queira dar a isso); cegueiras que não permitem ver o próximo e as necessidades alheias, cegueiras que limitam os sentidos apenas ao que concerne ao próprio indivíduo que as carrega.
Ódio, violência, egoísmo, guerras. Cegueiras que vemos todo dia e toda noite.
Cegueiras que, num paradoxo triste, nos fazem ver que já estamos todos cegos.
Uma citação:
''POR QUE FOI QUE CEGAMOS, NÃO SEI, TALVEZ UM DIA SE CHEGUE A CONHECER A RAZÃO, QUERES QUE TE DIGA O QUE PENSO, DIZ, PENSO QUE NÃO CEGAMOS, PENSO QUE ESTAMOS CEGOS, CEGOS QUE VEEM, CEGOS QUE, VENDO, NÃO VEEM.''
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