13/10/2015

Pensamentos mortos.

Sou uma criatura reflexiva. Não sei por que não virei filósofo, se isto é ficar pensando e pensando nas coisas da vida. Não é só isso, claro. Não quero manchar e desmerecer a imagem  e esforço de quem se dedicou nesta área lançando minhas concepções deformadas a respeito do assunto, mas enfim. A questão é que penso muito, reflito em uma intensidade e constância que vai muito além do que é saudável para o cérebro de qualquer ser humano.
Eu penso. Isso é o que faço. Faço muito. Penso muito.
Mas não sou filósofo. Sou ator.
E o que desencadeou a corrente de pensamentos que se sucederá foi o novo papel que me incumbiram de incorporar num personagem de uma peça.
Serei um morto.
Só isso. Só alguém que morreu. Uma criatura branca-arroxeada estirada no caixão preto (para contrastar de vez com minha palidez) com forro vermelho.
Ali, parado, enquato os amigos/familiares/conhecidos transitam pela sala em silêncio sepulcral. Aquele silêncio de velórios que parece ensaiado, com coxixões aqui e ali, e troca de olhares (menos com o morto; o roteiro diz que estarei de olhos fechados) em desespero cúmplice entre uns e outros. O tipo de situação para a qual preparam você a vida toda...
''Filho, tio Olavo morreu. Fique em casa quietinho enquanto a mãe vai ao enterro, tá?''
...E sua mãe, vestida de preto dos pés à cabeça, sai pela porta naquele dia que parece estar ensolarado demais só para o brilho do dia poder zombar de você, que está triste... Sua mãe passa pela porta, cabisbaixa, com um olhar vago e sem foco, quase tão sem vida quanto o do morto, a não ser pelas lágrimas no rosto, que no morto nunca mais escorrerão.
E é vendo esse tipo de situação ao longo de sua vida inteira que você sabe, a vida e o tempo te ensinaram, que o lugar de um morto (o velório, não a cova, no momento) é um lugar para ficar em silêncio. Como respeito.
Como nervosismo, desespero. Como pura e intensa tristeza.
Como a própria morte.
Por isso parece ensaiado. Porque o foi, de fato. Ao longo de toda a sua vida. Desde a primeira situação em que se deparou com a morte e com sua mãe chorando. Quando ainda era pequeno e jovem demais, e nem sabia que ela -a morte- veio para levar embora. Alguém.
Em todas as situações em você vê pessoas de preto indo tristes ao primeiro e último encontro com o morto; situações em que seus familiares ficam em silêncio por alguns minutos após dizer que aquele primo de Santa Catarina, que vocês quase não viam por causa da distância, agora não verão nunca mais, por causa da morte. Aqueles momentos em que você vê lágrimas escorrendo para logo serem escondidas ou deixadas lá, após a fatídica sentença pronunciada: ''ele(a) morreu''.
Eles te ensaiam, esses momentos. Te preparam. Então, quando alguém morre, você sabe que terá de ir de preto, ficar em silêncio, de cabeça baixa, e se deixar ser triste. Ser triste porque é adequado, o protocolo dita. Ou porque você simplesmente está triste de verdade.
Está triste.
Não tem mais aquele buraco negro que tinha na barriga enquanto fulano estava adoentado no hospital, porque agora não tem buraco nenhum, em lugar nenhum. Nada. Está tudo vazio, triste. Fulano se foi e o buraco também.

Bom, quando alguém morre, você sabe o que fazer -a menos que não fique com vontade de fazer nada, senão também morrer.
Mas em geral você simplesmente sabe o que fazer.

Viu? Eu penso e discorro. Penso e reflito. Demais.
Mas não sou filósofo. Sou ator.
Só penso. Minha mente é a criatura mais ativa e reflexiva que conheço. A mais viva.
E foi nisso que me pus a pensar... Não, não me pus a pensar, na verdade. Os pensamentos simplesmente me acometeram e pronto. Se tocaram sobre mim como loucos esfomeados em busca da presa, insanos e completamente desorganizados. Eles me atacam, e nem sempre é possível sair vivo da carnificina. Nem sempre saio. Às vezes morro. Mas ressuscito.
Ressuscito depois de algum tempo pensando. Ressuscito da morte que meus pensamentos me trouxeram...
Céus, como penso!
E foi nisso que me emaranhei. Foi esse o pensamento que me chacinou: minha mente e os pensamentos. A ativa e viva mente. E a morte.
Como compreender a ideia de que a mente do morto não viverá, deixará de ser ativa e não produzirá mais? Nada. Não pensará mais. Nunca mais.
Reflita comigo por um momento: todos os pensamentos que um dia ele (o morto de agora que era vivo, outrora) poderia vir a ter, todas as ideias, todos os textos, frases, poemas, músicas, composições, livros inteiros que poderiam um dia sair da mente dele, não terão essa chance. Não poderão se libertar e ter o privilégio de existir. Nunca.
Foram embora, juntos com o morto.
Fico pensando quanto conteúdo poderia derivar da mente que era dele, quanta coisa boa, como arte e livros, não existirão porque o tempo não lhes deu essa chance. O monte de vida que poderia sair da mente dele foi para a cova junto com o corpo.
É triste pensar que talvez muita coisa boa, feliz, humana e de qualidade poderia, mas nunca existirá. Jamais. Coisas que só a mente do morto em particular (porque cada um tem uma, em especial, e nenhuma outro já foi, é ou será igual) poderia criar. São possibilidades que morreram, foram enterradas, não tiveram e jamais terão a chance de viver e, talvez, mudar outras vidas.
Não é absurdo pensar que muitas coisas que poderiam viver (muitas coisas que já estavam parcialmente em vida na mente do morto que era vivo), jamais perambularão pelo mundo? Pois alguém morreu, e a morte eternizou a inexistência.
Você está me acompanhando? Está entendendo minha linha de raciocínio?
Pensar nisso é triste. Demais. Pura, simples e profundamente triste.
Essa é a verdadeira morte. Não a do corpo físico, mas a do ''corpo mental'', que vai junto. A morte das possibilidades.
E pensar que talvez muitas das coisas que já citei -livros, músicas, poemas- já estivessem no limiar da mente do indivíduo, quase já fora dele, como inspirações a serem reveladas, faltando só um pouquinho para ele externar seus sentimentos e pensamentos em arte em forma de livros, músicas...Quase saindo da cabeça dele para um papel ou estrofe... Quase lá e...Não deu tempo.
Ele morreu.
Me faz pensar que cemitérios são os lugares mais ricos do universo, pois lá estão milhões de livros, músicas, poemas que a mente humana poderia ter um dia criado.
Mas agora é tarde, estão enterrados, pois o moço que tocava violão e queria ser músico bebeu demais em uma festa e mesmo assim dirigiu...até pechar num poste e morrer num milésimo. E toda a sua música foi com ele.
Enterrados pois a jovem que ''comia'' livros e seria escritora ficou até tarde na rua, um homem grande passou, a estuprou e matou. E os livros que ela ia escrever foram com ela. Esterrados. Para jamais poderem viver e transitar no universo de nossa mentes.
Pensar em quanta riqueza de pensamento humano tem nas covas dos mortos, enterradas e sem a chance de sair de lá nunca mais, como os corpos. Quanta riqueza e conteúdo mental tem no cemitério inteiro. Riqueza que poderia, mas nunca existirá, pois foi levada pela morte, e agora só fica em sua inexistência mesmo, na cova.
Uma riqueza inalcançável. Tesouros impossíveis enterrados com o morto que morreu e os levou com ele, para nunca dividir com ninguém mais. Muito possivelmente o morto foi sem nem mesmo saber que os estava levando, pois ele ainda não tinha pensado nas ideias, nas coisas, nos pensamentos. É desesperador!

Bem, foi nisso que pensei, nas ideias e pensamentos dos mortos, pensamentos que nunca tiveram a chance de viver. Que nunca, NUNCA, fluirão pelo universo, passando de mente para mente, enriquecendo ou acrescentando coisas (ideias, recordações, sentimento singelos) às vidas de cada um.
Pensar nisso é triste. Os pensamentos mortos. Os que poderiam, mas nunca chegarão a existir.
Esse triste e singular pensar pôs os braços ao meu redor e me emaranhou no seu abraço profundo e eterno. Nunca mais me largará ou me deixará partir. Nem eu a ele, pois é isso que faço: penso e não deixo de pensar. Não os largo também.
Mas esse pensamento em especial me inquieta e atrai mais que os outros -como quase tudo que é referente à morte.
Não sei por que é assim, mas ele -esse pensamento- não me deixará jamais. Mesmo após eu fazer o papel do morto no roteiro, ele não me deixará. Ele me levará e eu o levarei para o túmulo comigo.
E então, a não ser por esse escrito aqui que deixei em vida e não sei se alguém algum dia lerá, talvez, ele será um pensamento morto também.
Mas que teve a chance de viver no meu alguém.

Fim.


Texto inspirado no conto Os Bolsos do Morto, de Luis Fernando Veríssimo.
Escrito em 16/04/2014

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