24/09/2016

O Quarto Fechado

Lya Luft é uma das minhas escritoras brasileiras preferidas (e é gaúcha <3!), e todos os livros dela que li até então têm essa característica de contemplamento dos personagens que, por alguma situação súbita ou premeditada, se veem impelidos a olhar para a própria história e refletir sobre os resultados e condições da própria vida. Assim acontece com Quarto Fechado.
Eu sou tremendamente apaixonada por livros que são tecidos para levar tanto o leitor quanto os personagens a refletir do início ao fim da narrativa, e a Lya sempre brinda seus leitores com isso.
Em Quarto Fechado somos inseridos na vida aos pedaços de uma família já quase completamente dividida pelas diferenças entre si que aos poucos foram afastando-os uns dos outros, causando a separação dos pais, Renata e Martim, que poucos ou nenhuns laços têm com os filhos gêmeos Camilo e Carolina, que acabam por ficar mais ao cuidado da vó Mamãe –mãe adotiva de Martim. Ela carrega esse apelido –Mamãe- dada sua disponibilidade imutável de mãe para com todos –especialmente a própria filha Ella, tetraplégica e com níveis avançados de retardamento mental. Mamãe também tem outra filha Clara, também vítima de um passado -ou devo dizer um de um homem?- que lhe deixou marcar irreparáveis.
Camilo, no entanto, morre, e a família se reúne como raramente fazia para velar o adolescente na casa de Mamãe. O livro todo se passa em dois dias de velamento do corpo, o dia da morte de Camilo e o dia seguinte, e durante esse tempo Lya nos expõem os pensamentos de cada personagem, que melancolicamente olham para o passado e o presente se perguntando o que fizeram da própria vida.
Renata, ex pianista que abandonou a carreira para tentar formar uma família, acabou por perceber que isso foi um erro, pois sua ligação com a música a chamava e não conseguia se desligar das vontades da antiga carreira para se dedicar à família. Triste pelo abandono que relegou à própria música, Renata se fecha em um casulo de descontentamento que aos poucos vai engolindo sua relação com Martim e os gêmeos, que já não era nada boa. Martim, sentindo-se fracassado pelo casamento perdido e falta de comunhão com os filhos, que pouco entendia e até mesmo considerava estranhos, também olha para o resultado de seus dias com insatisfação e tristeza.

‘’Envergonhava-se: Renata fora a sua fraqueza, sua humilhação. No começo pensava ser forte, ia ensinar-lhe a vida e conquistar aquele mundo interior dela, que o atraía tanto. Mas fora incapaz: o que nela havia de especial era inatingível para um homem como Martim. Por mais que a amasse, era preciso algo além disso, capacidade de a compreender, participar. O convívio acabara num constante desconforto. Martim sentia: ela me observa, me analisa. E me reprova.’’

Carolina, gêmea agora sem sua outra metade, é também atingida pela necessidade de rever sua existência e relação peculiar com o irmão morto.
É nesse cenário de incertezas, dúvidas, insatisfação, descontentamento e tristeza da reflexão de cada personagem que somos inseridos. A narrativa é uma vertigem alucinante do início ao fim, é incrível a maneira como Lya consegue nos fazer envolver no enredo e sentir e entender os personagens em tão poucas páginas -o livro tem 133 páginas, apenas, proporciona uma leitura fluída e rápida, li-o em apenas algumas horas, à noite.
Uma coisa que encanta muito nesse livro é que Lya trabalha os personagens de uma forma que até mesmo aqueles que a princípio parecem simplórios e meramente secundários acabam por se revelar belos retratos da vida. Em certo ponto do livro somos envoltos pela perspectiva de Mamãe, sua insegurança com relação a maneira que criou os filhos, suas dificuldades no cuidado com Ella, a filha tetraplégica, e sua triste conformidade com o melancólico desfecho de sua vida. Clara, que também parece uma personagem apenas coadjuvante, rouba em cena em certo momento. Mulher bonita, conhecemos a história que a levou a ser uma pessoa de beleza notável mas que passa seus dias fechada em casa, sem amigos ou namorados, eternamente à espera do homem que há muito marcou sua vida e que fez de sua existência uma constante suposição do que seria dela se ele um dia voltasse.
Outra coisa muito interessante no livro é a relação dos gêmeos Camilo e Carolina. Perdidos entre o casamento a desfiar-se dos pais e a falta de compreensão para com eles, os gêmeos se refugiam um no outro, buscando cada vez mais uma igualdade e constância plena entre si, treinando para serem um, gêmeos não apenas no nascimento, mas também na alma.

‘’Camilo e Carolina, um estranho ser saído do seu ventre, duplo por engano, falha dela. [...] duas plantinhas fracas que alguém amarra uma na outra para que cresçam juntas, amparando-se.’’

Essa condição confusa entre eles é um dos fatores que impulsionam a morte –questionável suicídio- de Camilo, que também é explorada por Lya de um ângulo muito curioso da existência do jovem.

‘’Tivera de morrer: não se contentava com as débeis luzes nos olhos de Carolina. Sua existência fora atormentada: insuficiente porque só se completaria sendo também Carolina; excessiva, porque, sendo parcialmente a irmã, acabava sentindo tudo em dobro, vivia duplamente a sua própria experiência, e a de sua outra parte.’’

Enfim, o livro me marcou muito, certamente preciso recomendá-lo a outros. Embora eu leve o nome de Carolina, a filha, me envolvi de um jeito especial com
Renata, a mãe, pois tenho medo de acabar como ela. Como assim? Renata e eu somos muito parecidas, ela é quase um retrato completo de mim, me identifiquei muito com a personagem. Houveram MUITOS trechos que a descreviam que tive que sublinhar porque a semelhança comigo era tanta que, GENTE, ESSA SOU EU. Temo ser uma pessoa que leva uma carreira que acaba por envolvê-la em demasia, tornando insustentável o resto de seu convívio social, com família e amigos. Renata é dividida em dois pedaços: o que anseia por tocar piano e reconduzir sua carreira, e o pedaço vazio, insatisfeito de arrependimento e desconforto por não se encaixar na vida de mãe/esposa/amiga/companheira. Sinto um pouco disso também, sempre senti.
Bom, para não virar psicanálise, vou terminar a resenha dizendo que LEIA JÁ O LIVRO PORQUE É UMA LEITURA TÃO RÁPIDA E SIMPLLES QUANTO MARAVILHOSA, e um trechinho que não pode faltar:

‘’Eu me atirei nos braços dele para fugir da solidão e foi tudo uma fraude, ocorreu-lhe. Fugi de mim mesma.’’ (Renata.)


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