De Norman Mailer
Trouxe pra casa porque jurei já ter ouvido aquele título em algum lugar, não sabia onde, e gosto dessa coisa de jornalismo criminal. Demorei um pouco 
Vemos desde sua adolescência e parte da vida adulta conturbada entre uma prisão e outra até sua soltura, os nove meses de relações com o mundo -e pessoas- de fora durante sua liberdade condicional até os processos de condenação pelos crimes e o fatídico cumprimento da sentença. O livro completo, volume único, escrito pelo jornalista Norman Mailer (e que lhe redeu o prêmio Pulitzer) tem mais de mil páginas, mas o exemplar que tenho em mãos é o primeiro de uma série de livros de bolso que dividiu o volume em dois. Portanto, só li parte da história. O meu volume acaba quando Gary já foi condenado à morte mas seus advogados ainda estão tentando recorrer, embora ele já tenha manifestado a decisão de cumprir, sim, o seu destino já traçado. Não li nessa ~quase~ biografia sua morte, não cheguei nessa parte, mas pesquisei muito sobre tudo na internet e sei como a coisa termina.
O livro nos conta sobre todo tipo de pessoas envolvidas no caso, familiares de Gary, conhecidos, detetives e policiais que o caçaram, advogados e vítimas. Eu quase estava começando a simpatizar pelo Gary (desculpa), ele passa uma impressão de criatura desalentada e perdida na vida, entende? Mas quando li a história do primeiro homem que ele matou, um rapaz querido e correto, com uma família linda a começar, putz... deu um desgosto tremendo tudo aquilo. Mas enfim.
Há uma discussão muito válida que permeia o livro: quanto vale uma vida? Temos -alguém entre nós vivos- o direito de condenar à morte, de maneira constitucional, outro ser humano, a despeito do que quer que ele tenha feito? Cabe a nós esse tipo de decisão? Como qualquer um de nós pode determinar a morte de um outro alguém? Deve-se pensar nisso levando em conta o valor INSUBSTITUÍVEL da vida. Não só a vida ~de alguém~ tem valor, mas a ~condição de estar vivo~ em si, também. Um valor absurdo de tão precioso. E com um bater do martelo esse direito e condição são condenados a um fim irremediável.
Claro que sei que a coisa não é feita de uma maneira sumária, desleixada e instantânea -pelo menos não deve ser. Todo um processo judicial trabalhoso e cansativo precisa ser encaminhado para que se chegue a tal decisão, abordada através de diversos ângulos. Mas ainda assim, mesmo que seja uma coisa ''bem pensada'', temos mesmo esse direito de decretar a morte alheia?
Eu sei que se eu tivesse uma filha que foi estrupada certamente minha maior vontade seria poder extinguir com dor a existência daquele que cometeu tal ato. Ia querer que ele pagasse com a morte, sim. Mas eu teria esse direito? -não estou falando de direito legal, mas de direito enquanto ser humano. Eu teria? Acho que não.
Sei que um policial deve atirar quando um criminoso estiver pondo em risco a vida de uma pessoa inocente e concordo plenamente com isso. Mas são situações diferentes, é a escolha entre a prisão perpetua e a morte definitiva que cabe ao júri. Ainda assim fico pensando se a partir do momento em que tu negou o direito à vida de outra pessoa, ao matá-la, tu também deva ser poupado desse direito e condição tão fundamental, pois o infringiu quando se tratava do próximo. Entendo isso, entendo que, bom, Gary mereceu morrer. Mas ainda penso na tristeza da coisa toda e por mais que eu saiba que ele foi um desgraçado bosta, não deixo de sentir certa compaixão -que, eu sei, provavelmente não sentiria se ele tivesse ferido alguém próximo a mim. Enfim.
Essa discussão toda me lembra de um filme muito bom sobre a questão, deixo como recomendação pra quem se interessar: A Vida de David Gale.
Meu objetivo com essa resenha não é entrar no mérito institucional e legislacional nem discutir as consequências de se manter uma quantidade ainda maior de presos em regime perpétuo. Só quero explicitar meu sentimento sobre essa questão simples, crua e bela (ou não) que é o direito à vida, acima de quaisquer outros, entende? Acho legítimo pensar sobre.
No livro outro ponto de vista muito interessante em defesa da pena de morte e sobre o qual eu não havia pensado antes da leitura foi o de um diretor de presídio chamado Campbell:
Meu objetivo com essa resenha não é entrar no mérito institucional e legislacional nem discutir as consequências de se manter uma quantidade ainda maior de presos em regime perpétuo. Só quero explicitar meu sentimento sobre essa questão simples, crua e bela (ou não) que é o direito à vida, acima de quaisquer outros, entende? Acho legítimo pensar sobre.
No livro outro ponto de vista muito interessante em defesa da pena de morte e sobre o qual eu não havia pensado antes da leitura foi o de um diretor de presídio chamado Campbell:
''-Antes morto do que viver aqui nesta espelunca.
Campbell compreendia-o perfeitamente. no geral, a igreja LDS era apologista da pena de morte. E Campbell também. Achava que estar a ver um homem degradar-se, tornar-se mais odioso, mais vingativo e mau, tanto em relação a ele próprio como em relação aos outros, era de uma crueldade terrível. O indivíduo seria melhor assim, mudaria menos, seria mais ele próprio depois de executado. Era mais sensato passar para o mundo do espírito -e esperar pela ressurreição. Aí havia mais oportunidade de se lutar por uma causa. No mundo do espírito havia mais facilmente assistência do que degradação.''
Achei muito interessante essa perspectiva e me pus a pensar que, se for da vontade do preso -afinal de contas a morte seria dele-, a pena de morte realmente seria uma opção mais humana do que uma vida inteira de degradação atrás das grades. É um aspecto interessante que eu ainda não tinha abordado por mim mesma -e que sinceramente até renderia um post inteiro de dissertação, tão interessante é o assunto; mas vou parar por aqui.

Mas mudando um pouco o foco agora, outra coisa que me fez pensar com a leitura foi uma presença sempre constante no livro: Nicole Barrett. A namorada do Gary, que o conheceu assim que ele saiu da prisão. Eles construíram uma relação intensa e voraz durante o tempo em que Gary esteve solto e que se prolongou durante sua custódia antes de cumprir a sentença de morte. Nicole, mãe solteira de dois filhos, sem emprego e moradia fixos, sem formação e meio perdida, levando a vida a trancos e barrancos; e Gary, recém saído da cadeia e também perdido nesse mundo novo que num instante se abriu pra ele. Muito culto, entendedor de literatura e arte -o tempo na prisão serviu pra estudar trancafiado na sela e lhe deu conteúdo pra escrever longas e densas cartas a Nicole no tempo que antecedeu sua morte. Esse casal meio esquisito se forma. Mas não vou falar sobre eles enquanto completos um com o outro, com Gary em vida. Vou falar de Nicole depois que ele se foi.
Fiquei pensando comigo, como eu poderia continuar levando minha vida sabendo que minha alma gêmea -porque aparentemente eles eram isso um para o outro- partiu de um jeito tão dramático? Eu conseguiria? Não ficaria com a sensação permanente de estar sem um pedaço, com algo faltando, algo que não volta mais? Como eu lidaria com isso?
Porque é assim que Nicole, a real, dos dias de hoje, se sente. Ela não sabe se superou -e teria como? Não sabe bem como lidar com a vida depois daquilo. Ela e Gary, os dois combinados, tentaram se matar com remédios, mas não deu certo. Mais tarde ele morreu de fato e ela ficou, tendo que viver com tudo isso.
Porque veja bem, Gary não morreu num acidente ou com uma doença. Morreu porque outros assim escolheram por ele -e por ela. Uma decisão que no fim ele acatou. Gary concordou. Gary quis morrer. Quando a sentença saiu e ele viu que provavelmente não tinha mais jeito, disse aos advogados que parassem de tentar. Ele queria morrer, sentia que era sua responsabilidade. Viver seria errado.
E isso me parece diferente de perder alguém num acidente ou coisa parecida. Mais complicado de digerir, mais pedante, mais profundo. Certamente a reflexão sobre o ocorrido embalaria muito mais sonos meus do que se a procedência da morte fosse outra.
Fiquei pensando como eu me sairia na vida sabendo que o homem que amei matou duas pessoas e por isso foi condenado ao mesmo destino -e o abraçou. Não seria quase -e digo quase porque, independente da situação, PRECISAMOS aprender a lidar com ela- insustentável viver com isso?
A Nicole de hoje diz que se apaixonou por um fantasma, e ele acompanha ela em lembranças e em presenças diariamente. Li uma matéria em que ela dizia que queimou algumas cartas dele (em certo ponto o livro é recheado delas) numa tentativa de enterrá-lo mais uma vez, porque tê-las ali não ajudava. E ela continua com esse acompanhante invisível em sua vida -sempre. Tive dó dela. Quis abraçar Nicole e dizer que entendia essa sensação esquisita e triste que ela enfrenta. Mas a verdade é que não posso entender ~plenamente~. Não tenho esse tipo de fantasma comigo e não quero nunca ter.
Diferentemente de Nicole, quero poder enterrar os que morrem em mim, quero ser completa, sem faltar nenhum pedaço, quero ter a liberdade de saber que quando sozinha estou assim eu basto.
Mas Nicole não pode. E talvez nem Gary.


Fiquei pensando comigo, como eu poderia continuar levando minha vida sabendo que minha alma gêmea -porque aparentemente eles eram isso um para o outro- partiu de um jeito tão dramático? Eu conseguiria? Não ficaria com a sensação permanente de estar sem um pedaço, com algo faltando, algo que não volta mais? Como eu lidaria com isso?
Porque é assim que Nicole, a real, dos dias de hoje, se sente. Ela não sabe se superou -e teria como? Não sabe bem como lidar com a vida depois daquilo. Ela e Gary, os dois combinados, tentaram se matar com remédios, mas não deu certo. Mais tarde ele morreu de fato e ela ficou, tendo que viver com tudo isso.
"The things I went through are still in me," Baker said. "I still feel them sometimes, like on a cold winter morning, I look out the window and I get that same lonely feeling I felt when I . . . knew I wasn't going to see Gary anymore."
-Nicole diz em entrevista
E isso me parece diferente de perder alguém num acidente ou coisa parecida. Mais complicado de digerir, mais pedante, mais profundo. Certamente a reflexão sobre o ocorrido embalaria muito mais sonos meus do que se a procedência da morte fosse outra.
Fiquei pensando como eu me sairia na vida sabendo que o homem que amei matou duas pessoas e por isso foi condenado ao mesmo destino -e o abraçou. Não seria quase -e digo quase porque, independente da situação, PRECISAMOS aprender a lidar com ela- insustentável viver com isso?
A Nicole de hoje diz que se apaixonou por um fantasma, e ele acompanha ela em lembranças e em presenças diariamente. Li uma matéria em que ela dizia que queimou algumas cartas dele (em certo ponto o livro é recheado delas) numa tentativa de enterrá-lo mais uma vez, porque tê-las ali não ajudava. E ela continua com esse acompanhante invisível em sua vida -sempre. Tive dó dela. Quis abraçar Nicole e dizer que entendia essa sensação esquisita e triste que ela enfrenta. Mas a verdade é que não posso entender ~plenamente~. Não tenho esse tipo de fantasma comigo e não quero nunca ter.
Diferentemente de Nicole, quero poder enterrar os que morrem em mim, quero ser completa, sem faltar nenhum pedaço, quero ter a liberdade de saber que quando sozinha estou assim eu basto.
Mas Nicole não pode. E talvez nem Gary.
''-Nunca ninguém é totalmente livre, Gary. Desde que viva com outro ser humano, nunca se é livre.''
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