05/12/2016

Gente Como a Gente

De Judith Guest
Tenho muitos volumes dessa coleção muito boa chamada Grandes Sucessos, da editora Abril Cultura, que ''meio que'' surrupiei das estantes abandonadas da minha antiga escola porque, no fim, o pessoal que organizava a biblioteca teria tocado fora, como fizeram com uma série de outros ''livros velhos''. Sacrilégio.
Já li vários (tem resenhas aqui pelo blog) e o da vez foi Gente Como a Gente. No original, Ordinary People.
Ele conta a história de uma família de três integrantes, pai, mãe e filho, que vem sobrevivendo e lidando em silêncio com um trauma terrível: a morte do irmão mais velho num acidente de barco que resultou em seu afogamento. Um detalhe: o irmão mais novo, Conrad, estava com ele e sobrevive, mas carrega consigo um sentimento constante e sutil de culpa e recriminação. Por isso, meses depois, tenta suicídio e vai parar numa clínica de tratamentos psicológicos. A narrativa começa depois que Conrad já voltou para casa e está tentando reconstruir sua rotina de ''vida normal'' após a tragédia. Mas o presente dos personagens é assaltado por diversos flashes que nos levam ao passado, tornando conhecidos os acontecimentos que vão se revelando aos poucos no desenrolar do enredo. Outro detalhe da narrativa é que grande parte dela é composta por fluxos confusos e súbitos de pensamentos dos personagens protagonistas, que são Conrad, o filho, e Calvin, o pai. Somos jogados sem prévio aviso em meio à teia de pensamentos e reflexões deles, que se desenrola num ritmo frenético e por vezes meio desconexo, como realmente acontece com a mente de todos nós. Isso confunde um pouco o leitor, mas nada que prejudique significativamente o entendimento geral da obra; pelo contrário, esses momentos de divagação são importantes na narrativa.
Os capítulos intercalam o protagonismo de Conrad e Calvin, então somos levados da visão de um pra outro ao longo do livro. E os detalhes técnicos acabam por aqui.
Essa é uma história extremamente sensível, e o tema é abordado com tanta sutileza pela autora que é muito fácil se ver lendo trinta páginas adentro da narrativa sem saber -sem notar- bem do que ela está se tratando.
Ela fala de silêncios, de fuga, de entorpecimento -do querer o entorpecimento- de omissão ante a sentimentos, assuntos e pesares que precisam ser tratados, precisam ser abordados, precisam ser enfrentados. Precisam ser sentidos. Porque você só supera aquilo pelo que já passou; não se supera nada deixando o assunto num cantinho escondido do bolso, pois ele não está sendo trabalhado e, por isso mesmo, não há possibilidade de ser superado. E só depois de cuidar da tristeza que algo causa a felicidade que esse algo também já causou e que precisa ser lembrada pode aparecer novamente.
Essa família mergulhou num ''não devemos falar/pensar sobre isso'' constante com relação à perda do filho mais velho e tentativa de suicídio do mais novo. E nesse silêncio gigantesco e externo vários gritares internos ficaram retidos, suprimidos, contidos, gerando uma existência insustentável que vivia à base da evitação de sentimentos necessários e reais.
Conrad não sabe como lidar consigo mesmo, com a culpa, nem sabe direito que existe essa tal culpa. Calvin fica perdido querendo ajudar o filho, guardá-lo seguro contra si mesmo ao passo que também tem que dirigir sua atenção à união com a esposa introspectiva, fechada e supostamente imperturbável. A mãe e esposa, por sua vez, adota uma postura defensiva ante aos sentimentos ruins que poderiam assolá-la se se entregasse a eles e à responsabilidade que Conrad parece empurrar para ela em decorrência de sua tentativa de suicídio.
Vemos uma família aparentemente perfeita ruir aos poucos pois suas bases estão sendo deterioradas por conflitos internos que, permanecendo internos, não são tratados e viram veneno para cada personagem individualmente, resultando num grande corrosivo da família como um todo.
E é esse o desenrolar do livro. Vou parar por aqui pra não dar spoiler, embora o enredo não tenha grandes deles. Direi apenas que é uma história real -não porque aconteceu, mas porque é possível- de uma simplicidade realística, e assim é o seu fim. Tem um fim bonitinho, concebível e simples.
Tenho que fazer menção ao psicólogo que o Conrad passa a consultar depois que recebe alta da clínica, ôÔô carinha legal. Gostaria de ler um livro em que ele fosse o protagonista, daria coisa boa -que tal, Judith?
Enfim, eu recomendo sim o livro, embora ele não tenha me tocado taaaanto assim; talvez justamente porque, como eu disse, a perda, a tragédia, é abordada de uma maneira muito sutil e calma, não avassaladora -como acontece com os dias que seguem esse tipo de ocorrido: eles se arrastam, se demoram, se prolongam, e o choque, pânico e aflição não são sentidos de maneira arrebatadora em todos eles. Há também o entorpecimento e a tristeza apática, e vemos muito isso no livro.
Não se tornou um favorito pra mim, embora eu goste muito desses temas dramáticos e pesados, como acho que já deu pra perceber porque ô pessoa que lê drama e tristeza: eu (talvez por gostar tanto seja difícil algo corresponder a minhas expectativas), mas vale sim a pena ser lido. E refletido.
É bonito. Como eu já disse aqui, nem tudo que é triste precisa ser feio.

''-Escute, o que aconteceu hoje de manhã foi que você se permitiu sentir um pouco de dor. O sentimento é um todo, já lhe disse várias vezes. Se você não consegue sentir dor, também não vai sentir mais nada. E o mundo está cheio de dor. E também de alegria. De maldade. De bondade. De horror e de amor. É só você nomeá-los e aí estão eles. Por isso, não adianta querer fugir, querer se eximir, entende?'' 

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