27/04/2017

Os Lobos

De Alexandre Storch
(Ou Entre Lobos Bípedes, porque acho que gostei mais desse segundo título.)
Cresci rodeada pelo clima que leva a narrativa da segunda guerra mundial, porque meu opa (''vô'' em alemão, pra quem não sabe...coisa que compõe 90% das pessoas fora da Alemanha, creio eu; ''vó'' é ''oma'', para uma referência futura) lutou nela, tendo sido um jovem alemão naturalmente (e azaradamente, por que não?) recrutado pelo exército nesse período. O opa e a oma foram criaturas tão fantásticas e tão importantes na minha formação como pessoa que eles certamente merecem um post (uma série de posts, melhor dizendo) solo sobre eles e nada além deles, mas nesse aqui vou me restringir ao que toca esse livro. Opa, um cara fantástico (mas eu já disse isso, não?), super altruísta, gentil, carinhoso e gente fina que, já um senhorzinho, sustentou financeiramente trezentas crianças semi órfãs junto com minha oma e tornou a vida de muita gente mais fácil de se viver com uma quantidade enorme de doações que eles faziam constantemente; minha mãe está entre as crianças que só conseguiram ter algo parecido com um lar graças a eles. Não preciso dizer que, na guerra (e fora dela), ele não se enquadrou na parcela de criaturas malévolas do exército hitlerista que não hesitava em chacinar grupos enormes de pessoas e mandar tantos judeus pras câmaras de gás em virtude de um ideal de raça ariana doentio. Na verdade, tendo nascido no país em que nasceu, a despeito de seus posicionamentos avessos à força hitlerista, ele dizia que sempre tinha que se apresentar às pessoas pela primeira vez com uma frase do tipo ''meu nome é Ditmar e sou alemão, mas não nazista'', porque, para o mundo, pode-se entender quão difícil passou a ser dissociar uma coisa da outra, especialmente no meio daquele contexto.
Mas enfim, pra não divagar muito (tarde demais), vou concluir esses parágrafos dizendo que o assunto segunda guerra mundial sempre foi de meu interesse, desde pequena, porque uma pessoa querida e de importância ímpar para mim viveu esse momento memorável e dramático da humanidade, e desde minha infância trazia narrativas a respeito, quando estava comigo e com meus irmãos. Então desde sempre eu pego tudo que é tipo de material (livros, filmes, documentários, reportagens etc) sobre nazismo/II Guerra que consigo encontrar. É um assunto que sempre chama a minha atenção e que sempre consegue me fazer parar pra ver direitinho sobre o que é esse livro/filme que tô vendo nessa estante aqui... Não foi diferente com esse livro, Os Lobos. Apesar de já estar com uma montanha quase literal de livros nos braços quando o encontrei entre certas estantes por aí (as dos livros que roubei e tal, mas abafa), tive que abrir um espacinho a mais para ele. E que bom que eu fiz isso.
Sim, eu tava comendo sucrilhos. Me julgue.
Conhecemos, em primeira pessoa, a história de Storch, judeu sobrevivente da II Guerra que adotou esse nome pra fugir da delação mortal que seu nome ''verdadeiro'' provocaria, ao denunciar sua nacionalidade judia. Storch passou todo o período turbulento (nossa, isso é um baita eufemismo aqui, mas ok) do confronto indo de um lado a outro, se envolvendo com autoridades, grupos e pessoas diferentes para sair vivo da guerra. Vai de comerciante a líder político de pequena instância, combatente ativo da URSS, líder de pelotão, hóspede militante de um alemão da pá virada que comandava missões pequenas de sabotagem aos hitleristas e uma infinidade de outras nomenclaturas que eu poderia adicionar aqui. Basicamente, o cara rodou MUITO pra ir, aos poucos, sobrevivendo à guerra. Rodou tanto que seria quase humanamente impossível eu mencionar aqui todas as posições em que ele esteve, porque não li o livro anotando num caderninho cada referência.
Sendo uma criatura extremamente versátil (coisa extremamente necessária num conflito como esses, esse livro nos mostra), a capacidade de se moldar a situações diversas garante a Storch uma narrativa diferenciada da guerra, partindo de alguém que pôde observá-la através de diversos ângulos.
Vemos desde a apreensão inicial dos judeus e outros civis que não sabiam o que esperar do conflito ao drama de um homem que, por ser figura importante na cidade (e, como consequência natural, alguém que precisava ser afugentado primeiro), acaba preso e torturado até ter a chance de fugir de maneira completamente improvisada pra longe da família e amigos. Vemos alguém que, de maneira independente, começa a promover ‘’boicotes’’ ao exército daqueles que mandaram sua família aos campos de concentração, condenando-a a uma morte em anonimato e silêncio, e que posteriormente se alia aos combatentes opositores de seu adversário principal: o ideal hitlerista.
O livro, naturalmente, não se limita aos dois lados opostos popularmente conhecidos, judeus e nazistas, e mostra que muitas outras pessoas (grupos) fizeram parte dessa matança bagunça. Por estarmos na pele (através da narrativa em primeira pessoa) de um judeu diretamente inserido naquele contexto, vemos que o antissemitismo estava impregnado muito além do sangue ariano, e foi uma coisa que se desenvolveu gradativamente, alcançando diversas partes do globo. Vemos Storch sendo antagonizado por um racismo que dói na pele de quem lê, e esse tipo de postura definitivamente não parte só dos alemães. Não mesmo.
Isso era triste de ler, ver a facilidade com que seres humanos eram reduzidos a pedaços de carne que não valem nada só porque nasceram com esses ou aqueles genes. São os lobos que aparecem no título que o autor escolheu. São os lobos bípedes e carnívoros entre os quais ele viveu.
Comecei o livro com um trecho lindo que cobre as primeiras páginas, e não pude deixar de conjecturar sobre os motivos que o levaram a ter uma ‘’fama’’ ridiculamente menor que Anne Frank e seu diário, por exemplo. Os Lobos realmente não é um livro popular, foi difícil achar links a ele em vários sites bibliotecários que visitei, quase me levando a configurá-lo como um livro raro de se ter em mãos. Por quê?  
Ele é muitíssimo denso, esse deve ser o principal fator aqui. Não é um livro fácil, de uma sentada só, porque envolve conhecimento político, histórico, hierárquico, além de uma leitura cercada por várias nomenclaturas e nomes difíceis. Foi confuso e demorado ler, em vários momentos, e a leitura era dificultada por essa complexidade. Não é nenhum Tolstoy mas também não é uma adolescente escrevendo em seu diário, por mais sábia que ela seja (amo você, Anne). Definitivamente não se pode indicar esse livro a alunos da sexta série, enquanto O Diário de Anne Frank pode ser lido sem complicações até mesmo antes disso. Digamos que não é uma leitura acessível a todos, simplesmente...
Apesar disso, está recomendadíssimo pra quem se interessa pelo assunto. E, bom, acho que todos sabemos que livro ''fácil'' não é sinônimo de livro bom.
Vou terminar essa resenha falando de uma coisa interessante a que só esse livro me atentou. Foi a respeito dos sentimentos que precederam o início da guerra. Storch era uma figura marcante na cidade, quase uma autoridade, então sabia que seria um dos primeiros a serem condenados e, por isso, pôde tomar precauções que outras pessoas não viram como necessárias a si mesmas. E por isso sucumbiram. Diversas vezes vemos ele chegando a amigos, conhecidos e família no livro aconselhando-os a fugir, sair da cidade, sumir do mapa, porque os nazistas estavam chegando. E eles não faziam isso porque supostamente não tinham o que temer. Não eram autoridades políticas, não faziam parte de um exército opositor, não representavam nenhuma ameaça. Não faria sentido eles serem mortos, porque não cometeram nenhum crime. Mas para aquelas mentes doentias, era crime ser judeu, e por isso todas essas pessoas foram condenadas. Morreram porque não conseguiram dimensionar a barbaridade que se acometeria sobre eles, morreram porque seus corações não conseguiram enxergar motivo para alguma crueldade. Morreram por serem inocentes.
Foi triste ler trechos em que ele chegava para pais e dizia ‘’escondam seus filhos, tirem eles da cidade, mandem eles para longe, salvem suas crianças’’ e esses pais não davam credibilidade a essas admoestações, já que por que alguém iria querer matar crianças inocentes, que não fizeram nada e não prejudicam ninguém? Por que fazer algo assim?
Morreram. Porque a loucura humana é motivo suficiente e nada mais.

''NENHUM DE NÓS, SOBREVIVENTES DAQUELE MARTÍRIO, GOSTA DE FALAR NELE.
DÓI MUITO. COMO SE A CADA MOMENTO REVIVÊSSEMOS O PESADELO. E SERIA TÃO BOM ESQUECER!
ENTÃO, POR QUÊ? (Escrever.)
NO MEU CASO PESSOAL, A RESPOSTA ESTÁ EM UM PEQUENO INCIDENTE OCORRIDO QUANDO MINHA FILHA AINDA ERA UMA CRIANÇA DE 12 ANOS.
[...]
LEMBRO-ME COMO SE FOSSE HOJE.
ERA SÁBADO, DEPOIS DO ALMOÇO. EU ESTAVA FAZENDO A SESTA, ELA SE DEITOU AO MEU LADO E COMEÇOU A ME ACARICIAR OS CABELOS.
-PAPAI – PERGUNTOU DE REPENTE – POR QUE NÃO SOU COMO AS OUTRAS CRIANÇAS QUE TÊM AVÔ, AVÓ, TIOS, PRIMOS...
A PERGUNTA ME APANHOU DESARMADO. EU A OLHEI COM PREOCUPAÇÃO. ERA JOVEM DEMAIS PARA ENTENDER CERTAS COISAS. TEMIA CAUSAR-LHE DANOS SE CONTASSE A VERDADE. E MENTIR A RESPEITO DAQUELES HORRORES, NÃO DEVIA.
COMO DIZER-LHE, ENTÃO, QUE ELA ERA E AO MESMO TEMPO NÃO ERA COMO TODAS AS CRIANÇAS; QUE TAMBÉM TIVERA AVÓS, TIOS, PRIMOS E DEMAIS PARENTES, MAS OS PERDERA EM CIRCUNSTÂNCIAS TÃO TRÁGICAS?
[...]
PARA SATISFAZÊ-LA, PENSEI EM CONTAR-LHE ALGUM EPISÓDIO DAQUELES TEMPOS, QUE FOSSE INTERESSANTE E APLACASSE A SUA CURIOSIDADE.
MAS O MEU ESFORÇO FOI EM VÃO.
SEM QUE ME APERCEBESSE, LENTAMENTE O PASSADO FOI SE ASSENHORANDO DE MIM E COMECEI A REVER, COMO IMAGENS NUM FILME QUE NÃO CESSA DE RODAR, MEUS PAIS, MINHA PRIMEIRA ESPOSA, MEUS FILHOS, IRMÃOS, IRMÃS, TODOS SENDO LEVADOS PARA OS CREMATÓRIOS DE BELZEC.
[...]
QUANDO DEI CONTA DE MIM, CHORÁVAMOS OS DOIS, EU E A MENINA.''

(Talvez seja o trecho mais comprido que já postei ao fim de uma resenha aqui, mas vale a pena, não?)

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