De Alexandre Storch
(Ou Entre Lobos Bípedes, porque acho que gostei mais desse segundo título.)Cresci rodeada pelo clima que leva a narrativa da segunda guerra mundial, porque meu opa (''vô'' em alemão, pra quem não sabe...coisa que compõe 90% das pessoas fora da Alemanha, creio eu; ''vó'' é ''oma'', para uma referência futura) lutou nela, tendo sido um jovem alemão naturalmente (e azaradamente, por que não?) recrutado pelo exército nesse período. O opa e a oma foram criaturas tão fantásticas e tão importantes na minha formação como pessoa que eles certamente merecem um post (uma série de posts, melhor dizendo) solo sobre eles e nada além deles, mas nesse aqui vou me restringir ao que toca esse livro. Opa, um cara fantástico (mas eu já disse isso, não?), super altruísta, gentil, carinhoso e gente fina que, já um senhorzinho, sustentou financeiramente trezentas crianças semi órfãs junto com minha oma e tornou a vida de muita gente mais fácil de se viver com uma quantidade enorme de doações que eles faziam constantemente; minha mãe está entre as crianças que só conseguiram ter algo parecido com um lar graças a eles. Não preciso dizer que, na guerra (e fora dela), ele não se enquadrou na parcela de criaturas malévolas do exército hitlerista que não hesitava em chacinar grupos enormes de pessoas e mandar tantos judeus pras câmaras de gás em virtude de um ideal de raça ariana doentio. Na verdade, tendo nascido no país em que nasceu, a despeito de seus posicionamentos avessos à força hitlerista, ele dizia que sempre tinha que se apresentar às pessoas pela primeira vez com uma frase do tipo ''meu nome é Ditmar e sou alemão, mas não nazista'', porque, para o mundo, pode-se entender quão difícil passou a ser dissociar uma coisa da outra, especialmente no meio daquele contexto.
Mas enfim, pra não divagar muito (tarde demais), vou concluir esses parágrafos dizendo que o assunto segunda guerra mundial sempre foi de meu interesse, desde pequena, porque uma pessoa querida e de importância ímpar para mim viveu esse momento memorável e dramático da humanidade, e desde minha infância trazia narrativas a respeito, quando estava comigo e com meus irmãos. Então desde sempre eu pego tudo que é tipo de material (livros, filmes, documentários, reportagens etc) sobre nazismo/II Guerra que consigo encontrar. É um assunto que sempre chama a minha atenção e que sempre consegue me fazer parar pra ver direitinho sobre o que é esse livro/filme que tô vendo nessa estante aqui... Não foi diferente com esse livro, Os Lobos. Apesar de já estar com uma montanha quase literal de livros nos braços quando o encontrei entre certas estantes por aí (as dos livros que roubei e tal, mas abafa), tive que abrir um espacinho a mais para ele. E que bom que eu fiz isso.
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Sim, eu tava comendo sucrilhos. Me julgue. |
Sendo uma criatura extremamente versátil (coisa extremamente
necessária num conflito como esses, esse livro nos mostra), a capacidade de se
moldar a situações diversas garante a Storch uma narrativa diferenciada da
guerra, partindo de alguém que pôde observá-la através de diversos ângulos.
Vemos desde a apreensão inicial dos judeus e outros civis
que não sabiam o que esperar do conflito ao drama de um homem que, por ser
figura importante na cidade (e, como consequência natural, alguém que precisava
ser afugentado primeiro), acaba preso e torturado até ter a chance de fugir de
maneira completamente improvisada pra longe da família e amigos. Vemos alguém
que, de maneira independente, começa a promover ‘’boicotes’’ ao exército daqueles
que mandaram sua família aos campos de concentração, condenando-a a uma morte
em anonimato e silêncio, e que posteriormente se alia aos combatentes
opositores de seu adversário principal: o ideal hitlerista.
O livro, naturalmente, não se limita aos dois lados opostos
popularmente conhecidos, judeus e nazistas, e mostra que muitas outras pessoas
(grupos) fizeram parte dessa matança bagunça. Por estarmos na pele (através
da narrativa em primeira pessoa) de um judeu diretamente inserido naquele
contexto, vemos que o antissemitismo estava impregnado muito além do sangue
ariano, e foi uma coisa que se desenvolveu gradativamente, alcançando diversas
partes do globo. Vemos Storch sendo antagonizado por um racismo que dói na pele
de quem lê, e esse tipo de postura definitivamente não parte só dos alemães.
Não mesmo.
Isso era triste de ler, ver a facilidade com que seres humanos eram reduzidos a pedaços de carne que não valem nada só porque nasceram com esses ou aqueles genes. São os lobos que aparecem no título que o autor escolheu. São os lobos bípedes e carnívoros entre os quais ele viveu.
Comecei o livro com um trecho lindo que cobre as primeiras
páginas, e não pude deixar de conjecturar sobre os motivos que o levaram a ter
uma ‘’fama’’ ridiculamente menor que Anne Frank e seu diário, por exemplo. Os Lobos realmente não é um livro popular,
foi difícil achar links a ele em vários sites bibliotecários que visitei, quase
me levando a configurá-lo como um livro raro de se ter em mãos. Por quê?
Ele é muitíssimo denso, esse deve ser o principal fator
aqui. Não é um livro fácil, de uma sentada só, porque envolve conhecimento
político, histórico, hierárquico, além de uma leitura cercada por várias
nomenclaturas e nomes difíceis. Foi confuso e demorado ler, em vários momentos, e a
leitura era dificultada por essa complexidade. Não é nenhum Tolstoy mas também
não é uma adolescente escrevendo em seu diário, por mais sábia que ela seja
(amo você, Anne). Definitivamente não se pode indicar esse livro a alunos da
sexta série, enquanto O Diário de Anne Frank pode ser lido sem complicações
até mesmo antes disso. Digamos que não é uma leitura acessível a todos,
simplesmente...
Apesar disso, está recomendadíssimo pra quem se interessa pelo assunto. E, bom, acho que todos sabemos que livro ''fácil'' não é sinônimo de livro bom.
Vou terminar essa resenha falando de uma coisa interessante a que só esse livro me atentou. Foi a
respeito dos sentimentos que precederam o início da guerra. Storch era uma
figura marcante na cidade, quase uma autoridade, então sabia que seria um dos
primeiros a serem condenados e, por isso, pôde tomar precauções que outras
pessoas não viram como necessárias a si mesmas. E por isso sucumbiram. Diversas
vezes vemos ele chegando a amigos, conhecidos e família no livro
aconselhando-os a fugir, sair da cidade, sumir do mapa, porque os nazistas
estavam chegando. E eles não faziam isso porque supostamente não tinham o que
temer. Não eram autoridades políticas, não faziam parte de um exército
opositor, não representavam nenhuma ameaça. Não faria sentido eles serem mortos,
porque não cometeram nenhum crime. Mas para aquelas mentes doentias, era crime
ser judeu, e por isso todas essas pessoas foram condenadas. Morreram porque não
conseguiram dimensionar a barbaridade que se acometeria sobre eles, morreram
porque seus corações não conseguiram enxergar motivo para alguma crueldade.
Morreram por serem inocentes.
Foi triste ler trechos em que ele chegava para pais e dizia ‘’escondam
seus filhos, tirem eles da cidade, mandem eles para longe, salvem suas crianças’’
e esses pais não davam credibilidade a essas admoestações, já que por que alguém iria querer matar crianças
inocentes, que não fizeram nada e não prejudicam ninguém? Por que fazer algo
assim?
Morreram. Porque a loucura humana é motivo suficiente e nada
mais.
''NENHUM DE NÓS, SOBREVIVENTES DAQUELE MARTÍRIO, GOSTA DE
FALAR NELE.
DÓI MUITO. COMO SE A CADA MOMENTO REVIVÊSSEMOS O PESADELO. E
SERIA TÃO BOM ESQUECER!
ENTÃO, POR QUÊ? (Escrever.)
NO MEU CASO PESSOAL, A RESPOSTA ESTÁ EM UM PEQUENO INCIDENTE
OCORRIDO QUANDO MINHA FILHA AINDA ERA UMA CRIANÇA DE 12 ANOS.
[...]
LEMBRO-ME COMO SE FOSSE HOJE.
ERA SÁBADO, DEPOIS DO ALMOÇO. EU ESTAVA FAZENDO A SESTA, ELA
SE DEITOU AO MEU LADO E COMEÇOU A ME ACARICIAR OS CABELOS.
-PAPAI – PERGUNTOU DE REPENTE – POR QUE NÃO SOU COMO AS
OUTRAS CRIANÇAS QUE TÊM AVÔ, AVÓ, TIOS, PRIMOS...
A PERGUNTA ME APANHOU DESARMADO. EU A OLHEI COM PREOCUPAÇÃO.
ERA JOVEM DEMAIS PARA ENTENDER CERTAS COISAS. TEMIA CAUSAR-LHE DANOS SE
CONTASSE A VERDADE. E MENTIR A RESPEITO DAQUELES HORRORES, NÃO DEVIA.
COMO DIZER-LHE, ENTÃO, QUE ELA ERA E AO MESMO TEMPO NÃO ERA
COMO TODAS AS CRIANÇAS; QUE TAMBÉM TIVERA AVÓS, TIOS, PRIMOS E DEMAIS PARENTES,
MAS OS PERDERA EM CIRCUNSTÂNCIAS TÃO TRÁGICAS?
[...]
PARA SATISFAZÊ-LA, PENSEI EM CONTAR-LHE ALGUM EPISÓDIO
DAQUELES TEMPOS, QUE FOSSE INTERESSANTE E APLACASSE A SUA CURIOSIDADE.
MAS O MEU ESFORÇO FOI EM VÃO.
SEM QUE ME APERCEBESSE, LENTAMENTE O PASSADO FOI SE
ASSENHORANDO DE MIM E COMECEI A REVER, COMO IMAGENS NUM FILME QUE NÃO CESSA DE
RODAR, MEUS PAIS, MINHA PRIMEIRA ESPOSA, MEUS FILHOS, IRMÃOS, IRMÃS, TODOS
SENDO LEVADOS PARA OS CREMATÓRIOS DE BELZEC.
[...]
QUANDO DEI CONTA DE MIM, CHORÁVAMOS OS DOIS, EU E A MENINA.''
(Talvez seja o trecho mais comprido que já postei ao fim de uma resenha aqui, mas vale a pena, não?)
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