Do John Connolly
Fazia tempo que eu não favoritava um livro e foi lendo esse que percebi o quanto sentia falta de uma dessas leituras que me arrebatassem, me deixasse hipnotizada, em completo estado de encantamento e com aquela vontade doce de chorar ao término da última página, porque que coisa linda foi isso que acabei de ler... Essa leitura foi tudo isso para mim.
Eu já tinha ouvido falar d'OLDCP antes, além de já ter topado com ele nas estantes da biblioteca e ter lido a resenha que fica na orelha do livro, sem falar do incontável número de comentários entusiastas e lisonjeiros feitos por diversos e famosíssimos jornais americanos e outros veículos literários, que os editores obviamente adoram (quem pode culpá-los?) inserir na última capa na diagramação final. Apesar de todos os pontos a favor da obra, eu realmente não tinha ideia de qual seria minha reação a ela, porque eu estava consciente de que essa seria uma história meio lúdica ao estilo fábula infantil e este geralmente não é um estilo que acompanho muito, embora ache lindo. Mas O Livro das Coisas Perdidas transcende muito essas preposições.
Um dos comentários na última capa fala sobre como o sucesso (sem nos restringirmos ao âmbito popularidade, aqui) do livro se dá graças à forma com que real e fantasia se relacionam tão bem, se complementando e se encaixando de forma natural, e eu preciso corroborar esse comentário porque essa é uma das impressões fundamentais que todo leitor que o pega em mãos deveria assimilar. Esse é o espírito do livro, a alma do negócio, sabem?
Nessa história conhecemos David, um garotinho taciturno e recluso que recentemente perdeu a mãe e que, na Londres da II Guerra Mundial, acaba se mudando com o pai, a recente madrasta que ele detesta (de forma injustificada, porque ela é bem querida), Rose, e o novo irmãozinho, Georgie, para a casa de Rose, um casarão de família que abriga alguns mistérios. David é um leitor assíduo e seu pai acha uma boa ideia deixá-lo num quarto parecido com um sótão, onde há várias estantes cheias de livros empoeirados. Mas algo estranho começa a acontecer: David começa a ouvir os livros conversando entre si e com ele, sobre contos de fadas, bruxas, princesas, guerreiros, batalhas épicas e mitológicas e sobre o próprio David, ali naquele quarto, sozinho com um monte de livros tagarelas. Conversas sobre o mundo em que vivemos e um mundo que não é o nosso, desconhecido e misterioso. Essas conversas (que ocorrem com todos os livros com que o menino topa, não apenas os de sua estante) acabam precedendo alguns ataques e convulsões que David tem e que o deixam inconsciente por alguns momentos; durante essas convulsões ele é acometido por visões de outro mundo, em que vislumbra castelos, batalhas, sonhos, ameaças e a própria mãe, que chama por ele pedindo resgate.
A mãe de David é uma figura presente em todo o livro, e mesmo que só a conheçamos brevemente nos primeiros parágrafos, é fácil simpatizar com essa mulher inteligente, amável e incrível que introduziu o filho no universo da literatura.
Numa noite solitária após uma briga feia com a madrasta e o pai, o menino acaba tendo uma de suas alucinações e escuta a voz da mãe morta pedindo que ele vá ao Jardim Rebaixado, um jardim nos fundos da casa, que já o tinha atraído antes. Se enfiando cada vez mais pra dentro do jardim, ele acaba entrando num tronco de árvore que o leva, não se sabe como, para outro mundo; o mundo sobre o qual os livros falavam.
Uma vez nessa outra realidade mirabolante, David acaba ficando preso por ação do Homem Torto, o vilão da história, sem achar a árvore que o levaria de volta para casa, e acaba tendo que se jogar na empreitada de cruzar toda a floresta mágica daquele mundo para encontrar o Rei, sobre o qual pouco se sabe, que supostamente tem um livro de propriedades mágicas capaz de revelar as coisas perdidas. É nessa viagem de dias que acompanhamos David - ele e aqueles dispostos a serem obstáculos em seu caminho (os vilões do livro e do outro mundo), e os que decidem acompanhá-lo, oferecendo ajuda.
Todo o universo mágico descoberto através do jardim e que preenche aquelas trezentas e poucas páginas é uma clara alegoria com nosso próprio mundo: há uma guerra se desenrolando; há o conflito entre o bem e o mal; existem os mocinhos, os vilões e as vítimas entre os dois lados; obstáculos se levantam, desafios se manisfestam, dificuldades surgem e em troca de todas as decisões de David há um preço a se pagar - exatamente como é no nosso mundo, na nossa vida, com a gente.
O Livro das Coisas Perdidas fala de como seria a minha, a tua, a nossa vida se ela fosse escrita na forma de um conto fantástico e surrealista. É dessa relação entre realidade e fantasia de que falou o/a crítico/a do Daily Express, na última capa.
E, não vamos esquecer, O Livro das Coisas Perdidas fala muito de sentimentos: como eles nos guiam, as atitudes e decisões que tomamos influenciados por eles, os diferentes cenários que eles compilam e os diversos mundos que criamos através e por causa deles. David tem muito ódio, amargura e ressentimento, e muito do que acontece com ele no outro mundo é ocasionado por causa desses sentimentos, já que grande parte daquele universo é idealizado pelo que existe na mente de seus habitantes - como também é com a gente, nesse mundo aqui.
Uma coisa engraçada pra mim foi ler e perceber como a história se assemelha às Crônicas de Nárnia; sério, é muito parecido e fica claro que em alguns momentos o autor se inspirou nesse clássico da fantasia pra escrever OLDCP (não tem como digitar aquilo tudo sempre, desculpa): adentra-se no novo mundo através de algo cotidiano e normal (um armário; uma árvore), há uma guerra acontecendo entre o bem e o mal (as criaturas a mando da rainha; os Loups), há vilões (Feiticeira Branca; Homem Torto e Loups), há criaturas que acompanham o protagonista para o bem (sr. Tumnos, castores; Lenhador, Rolando) e enfim... N'OLDCP só não tem uma grande figura benévola como Aslam é em Nárnia.
Ele também faz referência, de maneira mórbida e incômoda (tudo para manter a aura arrepiante presente do início ao fim), a vários outros contos populares, a partir de sua própria abordagem: conhecemos uma Branca de Neve obesa que importuna a vida dos anões que não aguentam mais viver com ela e já tentaram matá-la; uma Chapeuzinho Vermelho que acabou se apaixonando e dormindo com lobos (pois é), dando origem a criaturas malévolas; uma Maria, irmã de João, que tocou a bruxa da casa feita de comida no forno e matou a bendita queimada (pois é2), e uma infinidade de outros contos e anedotas meio perturbadores... É tudo bem mórbido e soturno e o autor não poupa esforços com descrições bem detalhistas sobre, por exemplo, uma caçadora que afugentava crianças e animais, decepava ambos, colava a cabeça das crianças no corpo dos animais e largava a nova criatura híbrida na floresta para que a caça ficasse mais divertida. Olha que tri, historinha ótima pra contar pro seu filho antes de dormir SÓ QUE NÃO. Lembro que comecei a ler o livro pensando que ele era o tipo de conto de fada às avessas que eu gostaria de ler para meus futuros filhos um dia, mas aí fui entrando mais na história e... ROULY SHIT.
Apesar de todo esse ângulo perturbador (ou por causa dele, na minha opinião, pois ADOREI QUERO MAIS), esse livro é como um abraço quentinho, embora intenso pra caramba, que seria bom explorar numa noite de inverno, ao lado da lareira, com chocolate quente, uma colcha de retalhos aconchegante e uma tempestade trovejando do lado de fora da janela. Ele é lindo e merece ser lido - além de ter um daqueles finais que me deixam genuinamente desconcertada de tanto encantamento e emoção.
Eu recomendo muito mesmo. Não perca a chance de levar O Livro das Coisas Perdidas pra casa, se você o encontrar por aí... Porque é claro que eu não poderia encerrar essa resenha sem fazer um trocadilho tosco com o nome.
''COMO A MÃE LHE DISSERA CERTA VEZ, O MUNDO DAS HISTÓRIAS ANTIGAS, DOS CLÁSSICOS CONTOS DE FADAS, EXISTIA PARALELAMENTE AO NOSSO, MAS, ÀS VEZES, O MURO QUE SEPARAVA OS DOIS MUNDOS SE TORNAVA TÃO FINO E FRÁGIL QUE ELES COMEÇAVAM A SE FUNDIR''
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