19/09/2017

O que aconteceu com o garoto da nona série?

Eu fiquei até tarde acordada (uma ocorrência mais comum do que deveria) porque queria assistir a um filme no corujão uma noite dessas. No meio da madrugada, vendo o enredo correr na tela e comendo bolacha Maria com leite, sozinha na sala, ouvi uns "estouros" seguidos do som de carro "cantando pneu" em algum bairro próximo ao meu. Levantei do sofá, que fica no último cômodo da nossa casa, mais distante da rua, e fui à outra sala, com janelas que dão direto para a avenida em que moro, já abrindo a porta do quarto do meu irmão que fica no caminho pra perguntar se ele também tinha ouvido e se sabia se eram disparos de revólver. Ele já estava com metade do rosto espiando pela janela, atento aos sons que tínhamos escutado e aos que poderiam se seguir a eles.
- Foi tiro mesmo.
- Nossa... De novo.
Lembrei de quando, em 2015, uma aula minha no turno da noite (para preencher de maneira dúbia a nova carga horária estipulada pelo governo) foi interrompida pelo som de tiros, por longo tempo ininterruptos, vindos da praça ao lado da escola (ponto de encontro do pessoal metido nas drogas), a nada mais de um muro e poucos metros de distância de mim e dos outros alunos (e da professora, apavoradíssima) na classe. Um rapaz de 19 ou 20 anos foi executado naquele dia. Foram 17 tiros, mais do que a corja de estudantes se abaixando desesperadamente dentro da sala conseguiu contar em meio ao tumulto e caos. O nome daquele que passou a ser apenas mais um corpo estirado na rua, com a mãe abraçada (ele foi morto quase dentro do pátio da própria casa, quando estava chegando da rua, pacientemente aguardado por não sei quantos indivíduos dentro de um carro estacionado ali mesmo) e a namorada aos prantos do lado (ela chegou junto com ele, mas não foi alvo de nenhum tiro porque aquilo era claramente uma execução predeterminada e não um homicídio ao acaso de quem se interpusesse entre as balas) eu já não lembro mais, mas sei que ele estudou no mesmo colégio que eu e pode muito bem ter sentado na mesma classe em que eu estava quando foi morto ao meu lado. Dívida no tráfico, foi o que ouvimos. Agora, aparentemente, a conta já foi paga, mas com um preço diferente.
Também lembrei de quando estava deitada no meu beliche conversando animadamente sobre RPG com um amigo pelo whatsapp, até nosso diálogo ser interrompido por uma correria ensurdecedora na rua, quando dois carros e uma moto passaram fugindo de uma viatura, disparando sem nenhum comedimento contra os policiais e quem quer que estivesse no caminho. Foi uma confusão só, e minutos depois (Era Digital, afinal) já recebíamos as fotos tiradas pelos vizinhos dos bairros próximos, onde a perseguição acabou deixando um bandido morto com um tiro na nuca esparramado na rua - além de uma dúzia de civis assustados fugindo pelos cantos, claro.
Lembrei de tudo isso quando, no meio do corujão, ouvi de novo aquele som já tão familiar que anuncia morte e desespero e fui dormir imaginando quais teriam sido as vítimas da vez, sobre as quais eu provavelmente ouviria falar nos noticiários do dia seguinte - coberta pela sensação familiar e confortável do distanciamento que carrega um alívio culpado, porque ao menos não é comigo, não é com ninguém que eu conheço...
Só que dessa vez era.
Como previsto, de fato acordei (ao meio-dia, confesso) para dar de cara com o noticiário anunciando que naquela noite nove (não uma, não duas ou três, mas nove) pessoas foram exterminadasecutadas na cidade. Briga de facção, acerto de contas, tráfico de drogas... quem sou eu pra saber? E pensar que Gravataí já foi considerada uma cidade pequena às sombras de Porto Alegre, onde nada acontece... Parece que os tempos mudaram; pena que foi pra pior.
Nove pessoas morreram e mais não sei quantas ficaram feridas enquanto eu assistia a Ensaio Sobre a Cegueira (nada mais adequado a esse contexto) no Corujão, enquanto dormia ao som de qualquer coisa no Spotify, enquanto minha irmã falava sozinha durante o sono no beliche de baixo e enquanto meu irmão jogava um jogo qualquer com a cara enfiada na tela do celular. Ouvimos isso na tv no dia seguinte enquanto almoçávamos de maneira corrida e pensamos que ''nossa, 9!, e aqui perto, que loucura!'', mas ainda víamos tudo através da visão turva de quem é apenas expectador. Mas a verdade é que éramos coadjuvantes; não bem protagonistas, mas em histórias assim a gente agradece por não faz parte do roteiro.
Mais tarde, minha mãe voltou do trabalho com a notícia, depois de passar de carro com meu irmão mais velho por um dos locais em que houve morte, a caminho da escola (ela é monitora escolar).
Na mesma escola em que ela trabalha atualmente, estudei até o segundo ano do ensino médio (antes do colegial falir e me deixar, com meus colegas, dormindo na classe por meses sem professores, mas isso é outra história). Da oitava à nona série eu tive a que seria a turma mais unida de todos os meus anos na escola. Quer dizer, havia sérias inimizades e farpas rolavam entre certas pessoas, mas saíamos juntos, ríamos, bagunçávamos e andávamos quilômetros (literalmente) para fazer trabalhos ao som de Nirvana (eterna trilha sonora da minha não tão distante adolescência) e simplesmente éramos uma turma. Era a minha turma e eu gostava dela, por mais estranho e aparentemente inconciliável que fosse nosso conjunto; gostava o suficiente para lembrar daqueles dias com saudade e lamentar a total falta de elos com que conduzi todos os meus outros anos de escola.
Foi a única turma em que realmente tive algum papel ativo, participativo e minimamente notável, e isso porque éramos poucos (oito; escola nos seus primeiros anos, ainda tentando ascender) e ninguém conseguia se esconder naquele número pequeno. Naturalmente, pelo mesmo motivo, a proximidade com cada um foi muito maior. No nosso grupo, uma das pessoas mais significativas e que monopolizava bastante a atenção era um cara que vou chamar de M. M era engraçadíssimo e fez muitas aulas com exercícios de funções a resolver no quadro ficarem mais toleráveis graças aos constantes ENGASGOS que os comentários cômicos dele provocavam em mim todos os dias, sem exceção - ainda uso algumas piadas dele como referência atualmente. Apesar de mantermos um contrato implícito de vamos fingir que a gente nem se gosta tanto assim e nem somos grandes amigos, ele foi uma das pessoas com quem desenvolvi mais proximidade. De oito alunos, estávamos ambos no grupo de cinco que criou mais afetividade.
Eu gostava muito dele - sempre como amiga, nunca como paixonite - e pensar no tempo que passei com ele e com nossos outros colegas é algo que me aquece o coração de pura nostalgia. Ainda assim, eu notava que ele era mais influenciável do que deveria e se envolvia com coisas erradas, ao ponto de poder se encaixar na lista de preocupações de pais, professores e amigos que temiam os caminhos errados que ele poderia (e parecia ser inclinado a) trilhar. Parecia se encaixar, lamento dizer, naquele velho estereótipo: ''esse daí acho que não vai a lugar nenhum na vida...''
Mas, como a fatídica (para muitos) noite em Gravataí, alguns noticiários e a mensagem de uma ex-professora minha e colega de trabalho da minha mãe na escola mostrou, ele chegou a um lugar, sim; um lugar que provavelmente ficará marcado como o pior em que ele já esteve: um carro parado numa rua escura, com dois... amigos (será?) já mortos a tiros do lado e ele próprio sangrando, agonizante, graças aos disparos que não sei quantos deram no trio antes de sair fugindo (porque eles tiveram a chance) e cantando pneu durante a madrugada.
Quando minha mãe voltou do trabalho com a notícia (''Lembra do M, Carolina? Sabe os tiros que deram essa noite e o número de mortos que vimos no jornal de meio-dia? Ele quase foi um deles; tava num carro à noite com mais dois meninos quando chegaram atirando. Os dois outros morreram e ele foi o único do trio a sobreviver. Agora está bem mal no hospital. Pelo que soubemos, era ele o alvo principal da execução...''), fiquei chocada. Como naquelas narrativas clichês, um fluxo de imagens e momentos passaram pela minha cabeça: nós na escola, nós na rua, nós numa loja do shopping comprando pringles, nós num ônibus quando eu não sabia como chegar ao local de uma festa e ele ia me guiar... Estivemos tantas vezes juntos no mesmo lugar, sendo semelhantes apesar das diferenças, sendo iguais, sendo dois jovens, dois colegas, dois adolescentes, dois amigos, dois humanos; isso tudo no passado, porque agora parecíamos tão diferentes e distantes: eu, sentada na cama com um livro nas mãos em plena integridade física, e ele, esparramado numa maca de hospital, baleado, sangrando, machucado e quase morrendo. Era tão esquisito pensar nisso e tentar visualizar como duas pessoas que estiveram no mesmíssimo lugar trilharam caminhos tão diferentes e acabaram em destinos tão antagônicos. Quer dizer, o que deu tão errado?
Depois de ouvir o que minha mãe contou, chamei um professor que tivemos em comum, de educação física, o professor mais amigo que eu tive, e contei a ele. Ele ficou chocado e disse, como eu imaginei que diria, que ele sempre imaginava que os jovens para os quais deu aula tivessem coisas (pessoas, decisões, trajetórias, destinos) boas na vida; coisas muito diferentes de levar três tiros e perder dois conhecidos numa mesma noite por causa das drogas. Falei de como era estranho saber que alguém com quem já tive tanto em comum e que esteve ao meu lado durante um tempo chegou a um lugar tão diferente do meu e ele disse ''é, Carol, cada um segue o caminho que escolhe...''
A gente sabe que não vivemos num mundo justo e num país fácil em que sempre se consegue chegar aonde se quer só com esforço, dedicação e boas decisões (meritocracia? até parece...); mas não são só as falhas do mundo e a desigualdade social que determinam nossos destinos e, principalmente, caminhos percorridos. Muito, muito mesmo, mas do que gostaríamos de admitir, é realmente fruto e consequência de nossas decisões e atitudes.
M tinha uma família estruturada que oferecia suporte ao que ele quisesse construir, vinha de um lar com uma condição financeira estável e confortável, não vivia numa comunidade afundada na criminalidade e teve tudo e mais um pouco do que um adolescente em processo de crescimento precisaria (família, estudos, saúde, segurança, dinheiro) para se estabelecer e desenvolver uma vida saudável; mas não, ele não aproveitou os privilégios e oportunidades que teve e optou por um caminho errado, péssimo, com consequências que ele conhecia e das quais estava plenamente ciente, porque não éramos mais crianças. Estou longe de ser uma pessoa modelo (quer dizer: desempregada e sem faculdade, quem sou eu pra falar?), mas como as condições de vida dele e minhas são as únicas que conheço o suficiente para poder estabelecer um comparativo aqui, posso dizer que ele teve muito mais opções e oportunidades do que eu durante a infância e adolescência, mas tudo isso parece ter sido sumariamente desprezado.
Enquanto escrevia esse texto, minha mãe me atualizou dizendo que M ainda está em estado grave, vai precisar fazer uma série de cirurgias para se recuperar fisicamente e terá que consultar três especialistas num hospital que aceitar o caso dele, tamanha é a gravidade da situação em que uma série de decisões e caminhos errados resultou. Ouvi isso e fiquei pensando no que será que aconteceu com aquele cara legal que vivia rindo e fazia piadas junto com o professor de matemática hilário que tivemos há não muito tempo atrás, mas que nesse momento me parece um cenário tão distante.
Quando a nona série acabou, perdi contato com praticamente todo mundo da turma, incluindo M. Achei triste, eu detesto finais. Mas lembro de ter passado por ele pouco tempo depois, na volta do trabalho (eu dava aulas de inglês, na época) uma vez. Ele me olhou como se não nos conhecêssemos, com um olhar pesado e uma postura rebelde e desinteressada. Fiquei um tanto confusa e sentindo um estranhamento incerto, porque aquele não me parecia o M que conheci. Agora sei que aquela foi só a primeira de uma série de vezes em que eu me perguntaria ''o que aconteceu com ele?'' - também meu pensamento mais recorrente enquanto escrevia esse texto.
Começo a perceber que, naquele momento em que o vi, houve um motivo para que eu sentisse que de um jeito estranho e inexplicável não sabia quem ele era: àquela altura, o garoto que conheci na oitava série já devia ter se perdido, deixando no lugar esse alguém que não conheço mais.

4 comentários:

  1. <3 eu queria escrever bastante coisa sobre isso que ce falou, mas as palavras me faltam, porque é meio que explicar o inexplicável: a gente não tem muito o que argumentar quando as coisas fogem do controle, as pessoas tomam decisões incompreensíveis, as consequências pesadas acontecem, a vida nos rouba as pessoas e os momentos... mas dói, né? dói demais ter contato com esse tipo de coisa, e é nessas horas que a gente sente que precisa botar uma palavra ali (ou várias) pra aliviar essa dor.

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    1. Eu quase tenho receio desse tipo de texto porque, se for sincero (como eu tento ser), sempre parece que um pedaço sensível e secreto de nós tá sendo exposto junto - e para uma pessoa meio retraída como eu às vezes sou, isso é difícil de lidar. Mas, de um jeito irônico, esses também são os textos que mais gosto de ver publicados, talvez porque, hoje em dia, eles sejam os mais necessários. =\

      E dói mesmo, né. Bastante. <\3

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  2. Eu sempre me pego refletindo sobre esse "efeito borboleta" que a vida possui. Sobre como pequenas decisões, às vezes [aparentemente] irrelevantes, vão moldando nossos caminhos. E só posso imaginar o quão difícil deve ser presenciar isso com alguém tão querido.

    É realmente impressionante como pessoas que eram tão próximas podem se tornar estranhos em meio a uma multidão - assim, do dia para a noite. E, muitas vezes, continuamos assombrados pelas lembranças que guardamos com tanto carinho, né?

    Gosto muito desse tipo de post, é tocante; ainda que, ao mesmo tempo, triste. É real, cru. E muito necessário.

    Fique bem!

    Beijos,
    Attraversiamo.

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    1. Isso de sermos assombrados pelas lembranças queridas e antigas com essas pessoas é bem certo. Eu acabei, infelizmente (ou não, nem sei mais), descobrindo exatamente por que ele estava na mira daqueles caras, e, putz, isso ferrou mais minha cabeça. Agora não sei bem o que sentir com relação a ele - se piedade, raiva, dó (acho dó um sentimento horrível), algum carinho, desprezo, nojo... Enfim, são dramas.
      Ah, e obrigada pelas palavras. </3 =*

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