03/07/2017

A Letra Escarlate

De Nathaniel Hawthorne
Acho que posso dizer que 2017 tem sido um ano de ler clássicos, porque na estante 2/3 dos livros marcados como lidos entram facilmente nessa categoria. E nessa resenha vou falar de mais um deles.
Foto tirada na biblioteca porque esqueci de tirar
em casa; sim, eu sei, muito triste esse monte de
livro nas estantes ao fundo não me pertencer.
A Letra Escarlate conta a história de Hester Prynne, uma mulher vivendo numa Boston puritana, comunidade pequena, condenada a carregar para sempre no peito um emblema que representa vergonha, humilhação e falha: uma letra ''A'' de ''adúltera'', da cor escarlate e bordada em contornos dourados.
Hester, que outrora tivera, segundo o conhecimento de todos, um marido que nunca chegou à cidade com ela e que muitos especulam estar morto ou perdido, engravida e tem uma filha que chama de Pearl (pérola), e que, daquele momento em diante, passa a ser de fato seu único tesouro na terra. Esse nascimento, em lugar de trazer felicidade e agrado com mais uma criança saudável vindo ao mundo para aumentar o número de habitantes da comunidade, se torna, na verdade, verificação indubitável do pecado, visto que Hester é casada com um homem que nunca esteve na cidade e que, portanto, ela traiu ao claramente engravidar de outro. O outro? Ninguém sabe quem é, além da própria Hester, que se mostra completamente determinada a proteger a identidade do homem.
Como esse segundo rosto é desconhecido, Hester é a única a pagar a penitência diária e constante por um ato que não executou sozinha; isso ela é forçada a fazer carregando consigo para cima e para baixo a letra escarlate, que ela mesmo borda ao peito, sendo uma tecelã talentosíssima e com trabalhos, ironicamente, requisitados por toda a sociedade com a qual convive - desde as mães que a pedem para fazer bordados para as filhas às autoridades e religiosos que ostentam seus emblemas que, supostamente, não são fonte de humilhação, tal como ocorre com Hester e sua marca.

Em suma, Hester Prynne vivia o tempo todo a terrível agonia de sentir os olhares das pessoas olhando seu emblema, que nunca cicatrizou; parecia, ao contrário, ficar mais e mais sensível com aquele martírio diário.”

No entanto, logo nas primeiras páginas do romance, quando Hester já desfilou publicamente mostrando a todos sua vergonha pregada ao peito, seu marido (o supostamente morto ou perdido), desconhecido por todos com exceção dela, chega à cidade como médico e se dispõe a cuidar do pároco de Hester, religioso ''responsável'' por ela, adoecido e enfraquecido por intempéries desconhecidas. Ele se apresenta a Hester e pede para que ela não revele o fato de ele ser seu marido desconhecido e, embora não manifeste grandes rancores direcionados a ela, promete descobrir quem é o homem que teve relações com ela, pois diz estar determinado a se vingar dele pela desonra que causou aos dois (mas especialmente a ele, o marido desconhecido que não sofre nenhum martírio diário e ocupa uma posição infinitamente mais privilegiada que Hester).
A partir disso, somos levados a explorar toda a dinâmica daquela comunidade, através da perspectiva de vários personagens; Hester, seu marido ''secreto'' médico, o padre de Hester e até mesmo Pearl; e somos guiados por um narrador que fala diretamente com o leitor. Embora a narrativa não se detenha à história de um único personagem em desenvolvimento, o foco de tudo, naturalmente, são os martírios constantes que Hester enfrenta. Ao olharmos para as páginas em nossa frente, é no lugar dela que nos imaginamos, essencialmente - e é o que ela passa que nos toca durante o livro.
A escrita do sr. Hawthorne é quase tipicamente o que esperamos ao ouvir a denominação ''clássico'': rebuscada, se arrasta um pouco, densa, relativamente complexa... PORÉM, ao contrário do que esperei a princípio, foi simultaneamente simples me deixar envolver no romance e compreendê-lo. A linguagem formal se mantém do início ao fim, mas, para mim (ênfase no ''para mim'', por favor, porque não vamos esquecer que a experiência de qualquer outra pessoa com o livro pode se desenvolver de forma completamente diferente), ela nunca chegou ao ponto de tornar a leitura massante ou me causar desânimo e preguiça. Gostei da escrita do cara, sim. No entanto, apesar de não ser AQUELA coisa complicada que é difícil acompanhar e compreender, ainda assim a narrativa nos obriga a prestar máxima atenção em cada frase e em casa parágrafo. Não é o tipo de leitura fluída em que você pode avançar cinco páginas adentro pensando na morte da bezerra (em qualquer coisa menos no próprio enredo) e ainda assim retomar o fio da meada sem qualquer confusão quando você lembra de voltar a atenção ao drama correndo nas páginas. Este é um livro exigente que requer cada segundo da sua leitura, entende?
Mas enfim, encerrando por aqui os ''detalhes técnicos'', esse livro é sofrido e fala de mazelas humanas, de todos os tipos - com isso incluo aqui não apenas o que acomete a humanidade de maneira independente, como doenças e morte, mas também me refiro aos martírios que o próprio homem provoca e direciona a seus semelhantes: intolerância, crueldade, castigo, torturas psicológicas, pressão nociva, miséria psíquica e física, exclusão, hipocrisia e a lista é extensa... Tudo isso cai sem sessar sobre as costas de Hester (embora não somente sobre as dela), e vemos ela penar para sobreviver em meio a essas coisas durante todas as 300 e poucas páginas.
A maneira com que a moça lida com isso e conduz sua vida depois de toda a desgraça que a acometeu e permanece com ela é muito curiosa e triste de se observar; embora Hester tenha seu nome difundido como uma das principais anti-heroínas da literatura inglesa, lamento ter de dizer que ela não se rebela contra o sistema de que é cativa ou se impõe contra ele e promove revoluções que o transformam - porque e como ela poderia, sendo uma mãe solteira e sabendo que, diante de qualquer rebeldia, seu único bem na Terra, Pearl, lhe seria arrancado? Hester, em vez disso, aceita com culpa o fardo que carrega, e toca sua vida se adaptando a ele e se tornando intrínseca a todas as privações que aquela letra bordada no peito lhe causa. Ela aceita tudo aquilo porque é obrigada a isso, mas sua força incomum diante da situação ainda se faz sobressair; em dado momento conhecemos o homem que esteve com ela e que segue isento de qualquer suspeita segundo os olhares alheios, e ele, apesar de (e, como percebemos, também por causa de) não carregar a própria culpa à mostra no peito, está acabado, detonado, um caco, sem mais nenhuma força para lidar com a situação, enquanto Hester segue firme porque ela, ao contrário dele, não tem mais nenhuma outra escolha.
Embora ela não se pronuncie explicitamente contra a injustiça com que é tratada, toda a aceitação de seu próprio sofrimento altera Hester. Seu emocional fica calejado, e para ter forças para continuar seguindo tão expugnável quanto possível, ela se faz forte, se faz rígida, se faz uma muralha pela qual não deixa mais qualquer coisinha passar. Hester muda, porque isso é tudo o que ela pode fazer para se proteger - e como a pessoa Hester se altera claramente por tudo isso, ao autoavaliar-se, ela acaba acolhendo aquela letra escarlate como parte de sua própria identidade, pois em função do que teve que enfrentar ao carregá-la no peito a moça se fez mais forte, mais resistente e mais guerreira.

Frequentemente é esse o destino e tais são as graves consequências para o caráter e a pessoa de uma mulher que tenha enfrentado e atravessado alguma experiência especialmente severa. Se for toda ternura, ela morrerá. Se sobreviver, a ternura será arrancada dela ou - e o efeito em sua aparência é o mesmo - ficará enterrada tão fundo em seu coração que nunca mais há de voltar a se mostrar. A hipótese mais verdadeira talvez seja essa última.”

Essa questão é interessante de se observar, porque ela é extremamente atual. Nós, mulheres, aprendemos na marra a sobreviver lidar com certos obstáculos diários porque não nos são dadas outras opções.
Eu, quando estou sozinha e sem nenhum protótipo de macho alfa por perto, PRECISO saber não reagir a obscenidades gritadas na rua; PRECISO tentar ignorar, tanto quanto possível, encarar de frente olhares maliciosos e, mesmo, ameaçadores; PRECISO manter em mente que minha força física é inferior a de muitos homens e que, portanto, um confronto é algo que devo evitar; PRECISO aprender a virar a cara, a ficar em silêncio, a não retrucar quando estou andando na rua à noite e algum babaca começa a provocar. Por quê, atualmente, preciso saber de todas essas coisas? Porque eu, tal como qualquer outra mulher que se vê sozinha, não tenho outra opção. Porque se eu reagir às obscenidades gritadas na rua, se ficar olhando de frente certos olhares sem virar a cara, se esquecer que não tenho força o suficiente pra derrubar um cara com um só soco, se não souber baixar a cabeça e seguir em frente quando estou sozinha (vulgo ''quando não estou com nenhum homem amigo por perto" - e é muito triste ter que frisar isso), as ofensas, os comentários, os olhares e as provocações podem evoluir para algo que infrinja minha integridade física.
Se eu ousar me levantar contra certos bossais que cruzam o meu caminho e o de outras mulheres, se ousar bater de frente com eles, sozinha, para manifestar minha revolta e exigir direitos simples como o de ir e vir sem ter de aguentar babacas me importunando, eu corro o risco de não acabar apenas insultada, humilhada, desrespeitada e enojada, mas também morta e atirada numa vala.
Hester Prynne aguentou humilhações (e foi condicionada a aguentá-las e aceitá-las - e inclusive a achar, em alguns momentos, que isso realmente era o certo, no contexto em que vivia) porque precisou; aguentou linchamento público porque não tinha outra opção; aguentou escárnio, desrespeito, intolerância, insultos e uma série de outras posturas ofensivas porque não tinha outra escolha; aguentou carregar uma marca que a transformava numa párea e viver com isso porque foi obrigada.
Hester Prynne teve que ser forte porque ser ''fraca'' não. era. opção.
No fim do livro, Hester, após sair da comunidade em que vivia por um longo tempo e voltar, anos depois, continua carregando aquela marca consigo - como eu disse, por ter sido moldada pela situação em que a letra escarlate a colocou, ela se tornou parte de sua personalidade. Ela, quando volta, acaba sendo símbolo de sabedoria, consolo e apoio; muitas mulheres daquela pequena sociedade procuravam-na para se aconselhar, receber auxílio, dialogar e ter um ombro amigo que entendesse as mazelas pelas quais elas, por serem mulheres, estavam passando. Nisso, acabamos tendo acesso a um pensamento de Hester (e do autor, formulado há mais de um século atrás): ela guarda consigo a esperança de que algum dia as coisas mudem, de que os relacionamentos possam ser conduzidos com mais leveza e menos censura e de que as mulheres não precisem fazer e aguentar certas coisas porque não têm outra opção. E ela ainda deixa claro saber que o pontapé inicial para que tal condição se estabeleça precisa partir de uma mulher... ou duas, ou um milhão. Ela sabe que somente as mulheres poderiam galgar a própria luta, e sabe que não é com ela, sozinha, que tal luta começaria e terminaria.
Ao fim do livro, tive vontade de abraçar essa Hester fictícia, vontade de sorrir pra ela e dizer que essa batalha sobre a qual ela pensava já começou. Dizer a ela que um exército já está em marcha.
Quase dá vontade de levar um ''A'' escarlate bordado na roupa também, porque tal como ocorreu com ela, da vergonha, da humilhação e da afronta foram tiradas força, coragem e garra.
Tal como nós, Hester se fez forte, todo dia e toda noite, porque qualquer fraqueza não era opção.

(Não assisti ao filme da foto (Easy A) e não sei bem em que contexto ele aplica a coisa da letra, mas achei a imagem no google, gostei e resolvi postar simplesmente por motivos de tá DIVA.)

''NO CORPETE, EMOLDURADA EM LABORIOSO TRABALHO DE ARABESCOS E FIOS DE OURO, APARECIA EM NÍTIDO RECORTE ESCARLATE A LETRA A...''

6 comentários:

  1. Eu não fazia ideia de que havia um livro com a história desse filme! Olhei ano passado com minha prima e adoramos! Muito boa sua resenha, beijos!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eu ainda não assisti ao filme, mas tô querendo muito ver a adaptação. =)

      Excluir
  2. Conhece esse livro através do filme Easy A que por sinal é bem divertido. O livro parece ser bem interessante e achei sua resenha bem completa parabéns!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eu não sabia do Easy A até pesquisar uma imagem pra colocar na resenha. Eu gosto bastante dessa atriz e acho ela linda, além de gostar da premissa do enredo cinematográfico, então tô querendo ver ele também. ;)

      Excluir
  3. Oie, tudo bem? Quando li o título do post já fiquei curiosa. Motivo? Justamente pelo filme A mentira. A bastante tempo tinha ouvido minha mãe falar sobre ele mas nunca me chamou atenção. Porém quando vi o filme fiquei curiosa pra saber a história de Ester. O livro é mencionado em diversos momentos durante o filme, porém não lhe darei spoilers haha Fica dica para o final de semana. Ah, parece que tem no Netflix. Com relação a resenha gostei bastante apesar de já saber mais ou menos o contexto. Ser mulher e precisar estar preparada para todas as situações do dia a dia é inevitável. Precisamos ser fortes. Beijos, Érika =^.^=

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. A cada comentário eu fico com mais vontade de ver o filme. Vou futricar na internet até achar porque não tenho netflix. D=

      Excluir