02/04/2019

Toda Poesia

Do Paulo Leminski

ONDE ESTARÁ MEU VERSO?
EM ALGUM LUGAR DE UM LUGAR,
ONDE O AVESSO DO INVERSO
COMEÇA A VER E FICAR.
POR MAIS PROSAS QUE EU PERVERTA,
NÃO PERMITA DEUS QUE EU PERCA
MEU JEITO DE VERSEJAR.

Eu sempre fui uma pessoa de prosa que sempre teve problemas com poesia. Apesar de já ter topado com obras que me deixaram estupefata de encanto, de maneira geral, eu encarava o gênero através da ótica daquele pedantismo impessoal falsamente atribuído a ele. Mas antes do pedantismo, o que me incomodava na poesia era o formalismo, as convenções, diretrizes e normas escritas sem as quais um poeta e um poema não conseguiriam escalar a estante dos clássicos de grande sucesso.
Rima, métrica, parágrafos milimetricamente projetados, linhas calculadas, palavras contadas. O processo de articulação de um poema, eu havia lido muitas vezes, era minuciosamente organizado, sempre levando em conta regrinhas e especificações inevitáveis, cuja falta os acadêmicos e críticos não perdoariam. Isso envolvia a poesia numa aura inacessível de superioridade aos meus olhos, e a colocava num pedestal onde nem todos poderiam alcançá-la e que ficava reservado aos mais cultos e instruídos, à esfera acadêmica ou qualquer balela do tipo, eu pensava (não objetivamente, mas de forma internalizada e vaga).
Sendo assim, onde estaria meu verso?
Essas impressões não deixam de estar certas; muito na poesia se pauta nisso. Mas alguns poetas gostam de quebrar um pouco as regrinhas, o que é ótimo: é bom quando a arte e o artista, às vezes, ousam desprezar pré-requisitos que os castrem. A liberdade como uma de suas principais virtudes não está aí à toa.
Tendo isso em vista, essa minha aversão leve e tosca à poesia, é engraçado ver o quanto topar com Toda Poesia, um livro de Leminski, especificamente Leminski, foi uma coincidência certeira pra que eu me deixasse encantar pelo gênero e baixasse minhas reservas preconceituosas e dubiamente fundamentadas.
Existem algumas controvérsias na categorização da obra de Leminski, porque ele é tido por muitos como um poeta de vanguarda por sua formação intelectual (ele estudou num mosteiro, olha só) e não era muito próximo de nenhum poeta marginal; mas a ideia de que ele era um deles acabou se difundindo e sedimentando por definitivo graças a seus trabalhos em publicações alternativas e a sua adesão à contracultura, o que o faz ser um dos principais nomes dessa frente.
A poesia marginal, ou geração mimeógrafo, foi um movimento literário que surgiu na ditadura militar e que buscava se contrapor ao conservadorismo autoritário e tradicionalista com essa quebra simultaneamente debochada e séria de regras, onde os poetas escreviam de uma maneira trocista, descontraída, bem-humorada e irônica sobre a brutalidade e o cotidiano - e, por isso, sua obra não era divulgada nos meios mais conservadores e normativos e recorria a publicações alternativas. Sua forma escrita e estilística não seguia as normas, por isso era renegada pela academia e esses artistas receberam a alcunha de marginais, pois ficavam às margens do padrão das editoras e publicações ditas sérias na época.
Algo assim era justamente o que eu precisava ler pra descartar todas as minhas falsas impressões sobre poesia e cair de cara em outras obras, porque Leminski e o movimento oferecem uma antítese velada a tudo o que eu antagonizava (de um jeito babaca, lembrando) no gênero. Eles poetizam com a zoeira; é quase como se fossem os criadores de memes da poesia.
Poucas leituras na vida me deixaram num estado de encantamento tão embriagado quanto esse livro. Eu lia e terminava cada poema diferente sendo assaltada por uma vontade de sair saltitando de contentamento por ter tido contato com algo tão lindo, tão singelo, tão especial e divertido quanto aqueles trocadilhos e versos ora ridículos, ora belos, sobre o cotidiano e a vida da gente.
Agora, meses depois da leitura, me pego com dificuldade de me sintonizar com esses sentimentos de novo, e ainda mais ao tentar dar contorno escrito a eles, logo eu, que não sou uma Leminski, que não tenho esse dom de pegar o rodapé e trazer pro centro da página, dessa maneira sutilmente esparramada que não se consegue ignorar. Mas enquanto não faço uma releitura, dessa vez em meu próprio exemplar, porque esse é um livro que eu me obrigo a ter comigo, lembro bem que eu ficava com vontade de sair mostrando aquilo pra todo mundo e lendo em voz alta pro primeiro que aparecesse do meu lado (coisa que cheguei a fazer com uma das tias da limpeza lá do trabalho no meu intervalo, risos).
Ao mesmo tempo em que usa a simplicidade do concreto como objeto de divagação, Leminski faz poesia com o não-dito, com o implícito, com a entrelinha, com o subentendido. Coloca pra fora o silêncio em forma de verso. Fala antes sobre a luz do que sobre o sol. Dá formas ao abstrato.
E como se toda essa sensibilidade e delicadeza dele não fossem suficientes pra me desarmar, sua poesia é hilária, sarcástica, irônica, zoeira, e o bom humor, meu deus, SEMPRE me ganha.
Eu precisava disso, dessa aproximação, dessa identificação que ocorre entre semelhantes, precisava ver que poesia também poderia ser coisa pra mim, coisa de gente como a gente, pra poder mergulhar de vez nessa arte sem medo de me afogar.

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

Falar sobre o gênero abre um leque bem amplo de discussões dentro da minha cabeça, onde uma das principais questões é a ''sensibilidade artística''.
Eu tinha um pouco de receio e preguiça de ler porque havia internalizado a necessidade de toda uma preparação ridícula para que eu pudesse imergir nas obras, como se houvesse uma Carolina-Modo-Sensibilidade-Poética-On que eu precisasse ativar quando fosse encarar um poema, porque onde é que já se viu ler poesia de forma descontraída, leve, cotidiana, como se fosse qualquer coisa? Poesia é poesia, é clássico, é a arte dos intocáveis, é Shakespeare (eu ainda não gosto de Shakespeare, pra uma referência futura; quem sabe um dia?). Não dá pra ler de qualquer jeito, na fila do pão, no intervalo do trabalho, sentada no vaso. Eu preciso estar pronta, acessar a cultualidade que guardo no fundo do baú pros momentos em que preciso dar uma de entendida, mesmo que só pra mim mesma... Porque poesia é isso, certo? É o formalismo, as convenções, diretrizes, normas escritas, rima, métrica, parágrafos milimetricamente projetados, linhas calculadas, palavras contadas, a AcAdEmIa e todas aquelas coisinhas que já mencionei lá em cima. E se eu não estivesse pronta pra ser tocada por isso, se não estivesse disposta a ler poesia, seria por falta de sensibilidade artística minha.
Pensar isso era frustrante, porque eu sou bem sensível pra arte e pra vida - sem querer me gabar, até porque geralmente isso me ferra.
Só que abrir uma página e me deparar com
ameixas
ame-as
ou deixe-as
quebrou todo o gelo e fez com que eu ficasse me sentindo uma idiota por colocar a poesia num pedestal inalcançável pensando que não era pra mim porque eu nunca seria culta, inteligente e instruída o suficiente para entendê-la e me apropriar dela, quando na verdade tudo isso é uma grande bobagem e é pra mim também, porque se não fosse pra todos não seria arte, porque não deve ter mistério e porque ameixas, ame-as ou deixe-as.
Leminski leva a zoeira a sério, porque fazer rir é o jeito dele fazer pensar. 
Eu já tinha adorado Quintana, já tinha invejado e ficado embasbacada com os amores de Florbela Espanca, já tinha achado os sonetos de Neruda uma lindeza, mas nunca tinha sentido nada como o que senti com Leminski ao ler poesia, esse sentimento de gratidão por ter sentimentos cotidianos representados de formas tão sinceras, e tão bobas, como as que eu li ali. Eu também acho que nunca tinha rido com poesia, e isso provavelmente me ganhou mais do que tudo.
Ele não fala só sobre grandes amores, sentimentos intensos, romances idealizados e coisas dignas de clássicos; ele fala, às vezes, sobre um pedaço de pão, sobre a rua, sobre uma folha que voa com o vento até cair, e eu precisava de algo simples, banal e cotidiano assim com o que me conectar. Precisava de algo que não parece se levar a sério, porque ser sério o tempo todo cansa e às vezes a gente precisa rir e ser ridículo, pela manutenção da nossa saúde emocional.
Eu sempre tinha olhado pra poesia (acho que nunca repeti tanto uma mesma palavra num mesmo texto, desculpa aí pela falta de léxico, não sou Leminski) com os olhos de uma espectadora distante que assiste ao show por cima do muro, porque muito antes de não ter competência pra subir no palco, nem tem sensibilidade o suficiente pra estar entre a platéia. É é por isso que Toda Poesia se tornou um dos grandes livros que mudaram a minha vida (você, leitor/a, já deve ter encarado essa questão antes). Porque Toda Poesia me conectou com a poesia, e eu preciso frisar essa palavra em itálico, porque ela é a chave aqui. Eu precisava dessa conexão, desse fio, dessa linha que me levasse até o resto do novelo, e foi isso que esse livro fez.
Logo após o término da leitura eu me toquei em outras obras, de outros autores, que não eram poetas marginais, e parafraseando o que eu já disse antesfoi como se um outro universo, pelo qual eu sempre passava mas ao qual nunca atentava, se descortinasse à minha frente. Agora sinto vontade de ler poesia, e isso é algo que não me acometia antes, por causa de toda aquela preguiça, receio e barreiras das quais falei. E além de sentir vontade de ler, ela, mais do que isso, virou uma pequena obsessão, assim como o próprio Leminski, cuja menção ao nome te fará me ouvir tagarelar por horas, porque eu poderia falar pra sempre desse cara, de como ele preza a arte inútil, de como o surgimento da obra dele se dar no contexto de repressão política da ditadura militar é uma combinação perfeita, apesar de trágica. Talvez uma outra hora a gente converse mais a respeito, agora que finalmente achei o verso que faltava. ;)

nascemos em poemas diversos
destino quis que a gente se achasse
na mesma estrofe e na mesma classe
no mesmo verso e na mesma frase

rima à primeira vista nos vimos
trocamos nossos sinônimos
olhares não mais anônimos

nesta altura da leitura
nas mesmas pistas
a minha a tua a nossa linha

A poesia realmente é uma arte à parte, acho que todos concordamos, a começar pelo formato. Realmente não é como prosa. Realmente é diferente. As regras estruturais não são só besteirol, apesar de eu gostar de como Leminski as ignora - ou contorna. Poesia tem sim um pouco de transcendental. Mas todas essas especificações lhe fazem charmosa, e não intocável e inacessível como eu sentia antes, e é bom finalmente desconstruir essa percepção. Depois de vinte anos de vida, catorze alfabetizada e mais de dez lendo com vigor, já não era sem tempo.
Ainda sou uma pessoa mais de prosa, acho que sempre vou ser, mas a poesia ganhou seu devido espaço em mim. Talvez uma hora Shakespeare chegue aqui, mas até lá eu fico com Leminski.

MARGINAL É QUEM ESCREVE À MARGEM,
DEIXANDO BRANCA A PÁGINA
PRA QUE A PAISAGEM PASSE
E DEIXE TUDO CLARO À SUA PASSAGEM.

MARGINAL, ESCREVER NA ENTRELINHA,
SEM NUNCA SABER DIREITO
QUEM VEIO PRIMEIRO,
O OVO OU A GALINHA.

(Não consigo deixar de me martirizar por saber que tem um monte de outros poemas dele que eu não transcrevi aqui, porque como é que você não vai colocar esse poema, Carolina?, ele é tão Leminski!; mas eu jamais conseguiria incluir todos os melhores e mais zoeiros poemas do Leminski sem ter que pedir os direitos autorais pra minha própria versão de Toda Poesia, Volume II, uma edição reduzida e apaixonada. Então vá ler tudo já.)

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