17/01/2017

De Bar em Bar

De Judith Rossner
Esse livro é uma história fictícia desenvolvida em cima de um pano de fundo verídico, sobre uma moça assassinada por um amante de uma noite, quase um desconhecido, nos Estados Unidos.
Já li alguns títulos com essa mesma abordagem (entre eles Dália Negra, que é um de meus livros favoritos e eu recomendo) e eles trazem consigo essa característica marcante que consiste em deixar o leitor confuso com os próprios sentimentos, não sabendo se eles são destinados à ficção ou à realidade. E isso é bem interessante de vivenciar -uma sensação que só esse tipo de livro é capaz de proporcionar.
Nessa narrativa (real ou fictícia, quem sabe?) conhecemos Theresa, uma moça a princípio tímida e inibida, professora de uma turma primária, filha e irmã que mora sozinha em alguns apartamentos diferentes ao longo do livro.
Theresa carrega consigo um complexo que tem origem numa cicatriz deixada por uma cirurgia de poliomelite à qual ela teve que se submeter quando criança. Além de deixar uma marca visível em suas costas, o procedimento e a doença fizeram com que ela adquirisse um andar diferente, mancado e sutilmente bamboleante -que alguns apenas reparariam como um jeito diferente de caminhar, nada mais. Ela se envolve em níveis diferentes com alguns homens, e suas inseguranças, conflitos internos e problemas que desembocam nesses relacionamentos são constantemente associados (mesmo que de maneira vaga) a essa cicatriz. É como se a autora tivesse criado uma analogia física pros problemas emocionais da personagem. Analogia essa que, tendo origem num acontecimento da infância, trás em questão todo o passado da personagem consigo, também.
Ao passo que sua história vai se desenvolvendo no livro, percebemos que individualmente Theresa não se sente nada ''desenvolvida'', muito pelo contrário. O que a segue é uma constante sensação de vazio e falta de propósito. Theresa não tem uma razão de ser e isso faz com que ela jogue parte da própria vida numa rotina descabida e ao léu, indo de bar em bar à cata de amantes, nas noites em que se sente vazia consigo mesma e quer preencher minimamente esse vazio com alguma companhia, mesmo que insignificante. Na verdade o fato de aqueles amentes não passarem de companheiros de algumas noites a traz tranquilidade, pois os separa da outra parte da sua vida (a parte em que é irmã, filha, professora e quase noiva de um cara legal mas que não a atrai nem um pouco sexualmente) que, de uma maneira louca e incoerente, lhe parece a parte mais irreal de todas.
Ela reconhece e gosta do fato de poder ter aqueles momentos com semi estranhos que conheceu sabendo que, quando o sol raiar, eles não estarão mais em sua vida -na outra parte de sua vida. Se abre com eles, conta um pouco sobre si mesma e principalmente escuta tudo que eles têm a dizer. E depois adeus, simples assim. Sem nenhuma amarra a mais, sem nenhum dever de amizade e atenção, nada. Só momentos que são vividos e depois deixados de lado. São esses momentos que, apesar de toda a aparente irrealidade, lhe parecem fazer algum sentido, lhe parecem existir de fato.

''Sentia-se tão irreal como os dias que acabava de passar. Tonta. Assustada. Não porque o que tinha feito não fizesse sentido para ela, mas porque, ao contrário, fazia perfeito sentido. Era justamente esse fato, de que nunca o vira nem voltaria a vê-lo, de que não o conhecia nem poderia vir a conhecê-lo, que lhe permitira abrir-se com ele. E isso era o que a assustava.''

É nesse ponto que vemos uma das facetas mais interessantes do enredo se formando: a vida dupla (e, consequentemente, a dupla personalidade) de Theresa.
Durante o dia uma professora querida, recatada e respeitada, e à noite uma moça desiludida que frequenta bares e cai na cama com diversos amantes diferentes pra tentar afogar com sexo a inércia da própria vida.
É bem triste ver a confusão que permeia essas duas áreas (quase antagônicas) da vida de Theresa; é envolvente a tristeza que ela sente por não se sentir completa em nenhum sentido, e sem se dar conta nós, leitores, começamos a torcer para que ela encontre uma razão de ser pra si mesma e saia de toda aquela rotina doentia e vertiginosa em que se tocou.
O triste é que você já começa o livro sabendo que Theresa morre, e sabendo que foi com um de seus amantes desconhecidos que a coisa aconteceu, então você se vê torcendo por ela enquanto outra parte do seu cérebro te pede pra parar com isso porque VOCÊ VAI DETESTAR VER ELA MORRER. E eu realmente detestei. Foi bem triste ver aquela moça confusa mas que tinha toda uma vida em potencial à sua frente ser assassinada por um dos homens que ela conheceu quando tentava fugir de si mesma. Deprimente.
O livro nos chama a essa reflexão básica sobre a vida: quantas peças de teatro diferentes fazemos com ela e até que ponto uma serve pra suprir o que faz falta na outra? Até que ponto nós chamamos cada uma delas de ''realidade'' e qual delas é a ''mais real'' e ''menos real'' dentro da nossa concepção pessoal. O que é teatrinho e o que é realidade com a gente?
Nós fazemos muito isso, tanto que chega um ponto em que fica difícil perceber, vira natural. A ficção que encenamos se mescla com a realidade que temos e viramos atores confusos sem saber onde fica o palco e onde ficam os bastidores. O que tá no script e o que a gente tá deixando acontecer naturalmente, como puro improviso?
É uma questão interessante.
Theresa tinha duas peças de teatro em cartaz constantemente, e não pensava abrigar nenhuma realidade em si mesma.
Até que ponto sou Theresa, eu me pergunto... Até que ponto você é?

''NA VERDADE, QUANDO PENSAVA EM TUDO AQUILO, SENTIA COMO SE NÃO TIVESSE APENAS UMA VIDA, COMO SE NÃO FOSSE APENAS UMA PESSOA, THERESA DUNN. HAVIA UMA SRTA. DUNN QUE ENSINAVA UMA TURMA DE CRIANÇAS QUE A ADORAVAM (''AQUELA ALI É SRTA. DUNN'', OUVIRA UM DE SEUS ALUNOS DIZER À MÃE. ''PARECE COM A GENTE, UMA CRIANÇA GRANDE.'') E HAVIA ALGUÉM CHAMADA TERRY, QUE ANDAVA PELOS BARES, À PROCURA DE HOMENS, QUANDO NÃO PODIA DORMIR. MAS A ÚNICA COISA QUE ESSAS DUAS PESSOAS TINHAM EM COMUM ERA O CORPO EM QUE HABITAVAM. SE UMA DELAS MORRESSE, A OUTRA NÃO SENTIRIA FALTA...EMBORA ELA, THERESA, A PESSOA QUE PENSAVA E SENTIA, MAS NÃO TINHA VIDA PRÓPRIA, FOSSE SENTIR SAUDADES DE AMBAS.''

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