De Winston Graham
Peguei aquela capa (já alterada pelo tempo de abandono numa
estante qualquer) que mostra o rosto sério de uma mulher e a fotografia de uma
criança triste, li aquele título que é um nome meio incomum, ‘’Marnie’’, e
pensei: esse livro vai ser dramático. Leva um nome como título, tipo aquelas
biografias de gente que sofreu muito pra vencer na vida, sabe?

Os roubos de Marnie ocorrem em espaços de tempo
consideráveis, pois eles exigem uma estruturação complexa: Marnie, sob uma
identidade falsa, se candidata a empregos em lugares em que facilmente se identifica
o sucesso financeiro; grandes empresas, bancos, cargos que constantemente lhe
permitem entrar em contato direto com dinheiro. Ela cria um novo nome para si,
uma nova aparência, se relaciona com os colegas do novo local de trabalho com
naturalidade, mas nunca se deixando revelar a fundo, nunca criando laços
concretos. Com sua inteligência notável, ganha a confiança dos superiores e em
semanas sobe de cargo nas empresas, ficando cada vez mais perto do encargo das
quantias monetárias que tanto almeja. E, quando o momento se mostra oportuno,
quando ninguém espera que aquela moça respeitável, dedicada e reservada cause
algum tipo de alvoroço, ela dá o golpe, pega um bom valor em notas e some do
mapa. Como criou personalidades que nunca existiram, não é difícil extingui-las
de fato e se tornar ilocalizável.
No entanto, no livro só acompanhamos em ampla perspectiva um
dos golpes de Marnie, cujas consequências se desenrolam ao longo das trezentas
e uma páginas. Acontece que Mark, um dos líderes da empresa que ela rouba, se
apaixona pela moça, e num golpe de sorte consegue localizá-la depois de sua
fuga. Mark convence Marnie a voltar à firma, coisa que só é possível porque ele
repôs o dinheiro roubado sem que ninguém percebesse, porque já estava
apaixonada e queria poupá-la das consequências. Ela volta com ele e, quando ele
propõe, acabam se casando. E é aí que começa o drama que eu esperava desde o
início.
Acontece que Marnie só aceita se casar com ele e finge uma
paixonite porque concluiu que era isso ou a cadeia. E, pior, ela tem pavor da
relação entre homem e mulher, acha sexo uma selvageria, uma coisa animalesca, e
o mais simples contato com Mark a repudia. É a partir desse ponto do livro que
vemos a personalidade de Marnie em toda a sua complexidade. Ela deixa de ser
aquela ladra convicta do próprio caminho e passa a ser uma moça que, olha só, é
confusa, cheia de traumas, dramas e medos.
Depois de uma lua de mel totalmente fracassada, Mark
compreende que não está lidando com uma moça de hábitos comuns (AHH VÁ), e a convence
a começar a se tratar com um psicólogo, para ver se os dois poderiam, algum
dia, realmente construir uma relação saudável –diferentemente do que estavam
vivendo, cada um em um quarto/canto da casa, com conversas rodeadas de muita
tensão e desconforto. Nessas consultas com o psicólogo nós também vamos nos
aproximando da real pessoa Marnie, que vive se escondendo e fugindo da própria
história e de si mesma. Nos capítulos que se seguem, se desdobra uma criatura
nova, que não imaginaríamos encontrar depois das páginas que introduzem aquela
ladra do início do livro. A pessoa que parecia totalmente apática e incapaz de
nutrir sentimentos significativos se mostra, pelo contrário, uma ciatura
intensa. O autor conseguiu criar uma
personagem profunda e complexa, cheia de dramas reais que envolvem o leitor.
As constantes personalidades que ela cria e a forma como
vive imergindo a própria vida nesses teatros reais em que busca por dinheiro
levanta questões sobre o interior da personagem. Sua relação com o dinheiro
também; a maneira com que coloca sobre as somas que arranja a esperança de toda
a sua autossuficiência toca o leitor atento. Pelo controle sobre a própria vida
ela cria disfarces para todos os que estão ao seu redor, incluindo sua mãe. A
única criatura a quem Marnie se mostra sem reservas é Forio, um cavalo ao qual
ela se dedica em todo tempo que sobra de suas andanças.
Eu já falei aqui da coleção Grandes Sucessos (que eu roubei
da biblioteca abandonada da antiga escola, mas não conta pra ninguém), e boa
parte dos livros que já resenhei fazem parte dela. Tem sido uma experiência
interessante fazer essas leituras, porque vi por experiência que não é todo
livro aclamado pela crítica e que leva o título de ‘’clássico’’ que consegue me
envolver de fato. Li muitos que me deixaram indiferente, mais do que o número
de volumes que fizeram eu me envolver por completo. Marnie foi uma das exceções; afundei até o
pescoço nos conflitos dessa moça, e me identifiquei com sua confusão em vários
momentos. Eu amo quando um bom escritor consegue retratar com clareza, de forma
tocante e convincente uma personagem feminina complexa, e Graham decididamente
fez um bom trabalho com Marnie, nesse aspecto e em muitos outros. Fiquei
fascinada pela personagem. Os dramas dela não me pareceram do tipo que cansam o
leitor com muito melação, e sim do tipo que instiga o espectador a querer
descobrir a origem de tantos traumas, além de torcer do início ao fim para que
a personagem encontre um descanso, um aconchego, uma saída de seus medos e
problemas.
No fim descobrimos um pouco dos motivos de todos os
sentimentos pesados que Marnie carrega no peito e que têm origem em sua
infância. O final também trás sua dose de surpresa, e, melhor, a chance de
torcermos mais por Marnie, diante da possibilidade de que ela se liberte de
suas amarras emocionais, mesmo que de maneira conflituosa. Torci tanto por ela
e Mark (ele é, sim, um cara legal), que aquilo, apesar de problemático, foi um
alívio ante o desastre que eu estava começando a temer.
Ficou curioso(a)? Leia.
Uma citação:
''CONCENTRE-SE NO SOFRIMENTO DE ALGUÉM, EM VEZ DE SE CONCENTRAR NO SEU. CHEGA DE CHORAR TANTO POR SI PRÓPRIA E TRATE DE DAR UMA OLHADA PELAS REDONDEZAS. AFINAL DE CONTAS, OS SOFRIMENTOS DOS OUTROS NÃO SÃO TÃO DIFERENTES ASSIM.
'HÁ APENAS UMA SOLIDÃO NA VIDA', PENSEI, 'E ESTA É A SOLIDÃO DE TODO MUNDO.' ''
Nenhum comentário:
Postar um comentário