03/02/2017

Marnie

De Winston Graham
Peguei aquela capa (já alterada pelo tempo de abandono numa estante qualquer) que mostra o rosto sério de uma mulher e a fotografia de uma criança triste, li aquele título que é um nome meio incomum, ‘’Marnie’’, e pensei: esse livro vai ser dramático. Leva um nome como título, tipo aquelas biografias de gente que sofreu muito pra vencer na vida, sabe?
Quando mergulhei na leitura me deparei com uma mulher decidida e que escolhe os próprios rumos sem hesitar. Nem um pouco melodramática ou piegas, ela vai se mostrando uma ladra de inteligência admirável que usa a esperteza e a beleza natural para arquitetar os planos que lhe angariam altas quantias em dinheiro, que ela usa para sobreviver e sustentar a mãe que mora distante.
Os roubos de Marnie ocorrem em espaços de tempo consideráveis, pois eles exigem uma estruturação complexa: Marnie, sob uma identidade falsa, se candidata a empregos em lugares em que facilmente se identifica o sucesso financeiro; grandes empresas, bancos, cargos que constantemente lhe permitem entrar em contato direto com dinheiro. Ela cria um novo nome para si, uma nova aparência, se relaciona com os colegas do novo local de trabalho com naturalidade, mas nunca se deixando revelar a fundo, nunca criando laços concretos. Com sua inteligência notável, ganha a confiança dos superiores e em semanas sobe de cargo nas empresas, ficando cada vez mais perto do encargo das quantias monetárias que tanto almeja. E, quando o momento se mostra oportuno, quando ninguém espera que aquela moça respeitável, dedicada e reservada cause algum tipo de alvoroço, ela dá o golpe, pega um bom valor em notas e some do mapa. Como criou personalidades que nunca existiram, não é difícil extingui-las de fato e se tornar ilocalizável.
No entanto, no livro só acompanhamos em ampla perspectiva um dos golpes de Marnie, cujas consequências se desenrolam ao longo das trezentas e uma páginas. Acontece que Mark, um dos líderes da empresa que ela rouba, se apaixona pela moça, e num golpe de sorte consegue localizá-la depois de sua fuga. Mark convence Marnie a voltar à firma, coisa que só é possível porque ele repôs o dinheiro roubado sem que ninguém percebesse, porque já estava apaixonada e queria poupá-la das consequências. Ela volta com ele e, quando ele propõe, acabam se casando. E é aí que começa o drama que eu esperava desde o início.
Acontece que Marnie só aceita se casar com ele e finge uma paixonite porque concluiu que era isso ou a cadeia. E, pior, ela tem pavor da relação entre homem e mulher, acha sexo uma selvageria, uma coisa animalesca, e o mais simples contato com Mark a repudia. É a partir desse ponto do livro que vemos a personalidade de Marnie em toda a sua complexidade. Ela deixa de ser aquela ladra convicta do próprio caminho e passa a ser uma moça que, olha só, é confusa, cheia de traumas, dramas e medos.
Depois de uma lua de mel totalmente fracassada, Mark compreende que não está lidando com uma moça de hábitos comuns (AHH VÁ), e a convence a começar a se tratar com um psicólogo, para ver se os dois poderiam, algum dia, realmente construir uma relação saudável –diferentemente do que estavam vivendo, cada um em um quarto/canto da casa, com conversas rodeadas de muita tensão e desconforto. Nessas consultas com o psicólogo nós também vamos nos aproximando da real pessoa Marnie, que vive se escondendo e fugindo da própria história e de si mesma. Nos capítulos que se seguem, se desdobra uma criatura nova, que não imaginaríamos encontrar depois das páginas que introduzem aquela ladra do início do livro. A pessoa que parecia totalmente apática e incapaz de nutrir sentimentos significativos se mostra, pelo contrário, uma ciatura intensa.  O autor conseguiu criar uma personagem profunda e complexa, cheia de dramas reais que envolvem o leitor.
As constantes personalidades que ela cria e a forma como vive imergindo a própria vida nesses teatros reais em que busca por dinheiro levanta questões sobre o interior da personagem. Sua relação com o dinheiro também; a maneira com que coloca sobre as somas que arranja a esperança de toda a sua autossuficiência toca o leitor atento. Pelo controle sobre a própria vida ela cria disfarces para todos os que estão ao seu redor, incluindo sua mãe. A única criatura a quem Marnie se mostra sem reservas é Forio, um cavalo ao qual ela se dedica em todo tempo que sobra de suas andanças.
Eu já falei aqui da coleção Grandes Sucessos (que eu roubei da biblioteca abandonada da antiga escola, mas não conta pra ninguém), e boa parte dos livros que já resenhei fazem parte dela. Tem sido uma experiência interessante fazer essas leituras, porque vi por experiência que não é todo livro aclamado pela crítica e que leva o título de ‘’clássico’’ que consegue me envolver de fato. Li muitos que me deixaram indiferente, mais do que o número de volumes que fizeram eu me envolver por completo.  Marnie foi uma das exceções; afundei até o pescoço nos conflitos dessa moça, e me identifiquei com sua confusão em vários momentos. Eu amo quando um bom escritor consegue retratar com clareza, de forma tocante e convincente uma personagem feminina complexa, e Graham decididamente fez um bom trabalho com Marnie, nesse aspecto e em muitos outros. Fiquei fascinada pela personagem. Os dramas dela não me pareceram do tipo que cansam o leitor com muito melação, e sim do tipo que instiga o espectador a querer descobrir a origem de tantos traumas, além de torcer do início ao fim para que a personagem encontre um descanso, um aconchego, uma saída de seus medos e problemas.
No fim descobrimos um pouco dos motivos de todos os sentimentos pesados que Marnie carrega no peito e que têm origem em sua infância. O final também trás sua dose de surpresa, e, melhor, a chance de torcermos mais por Marnie, diante da possibilidade de que ela se liberte de suas amarras emocionais, mesmo que de maneira conflituosa. Torci tanto por ela e Mark (ele é, sim, um cara legal), que aquilo, apesar de problemático, foi um alívio ante o desastre que eu estava começando a temer.

Ficou curioso(a)? Leia.

Uma citação:
''CONCENTRE-SE NO SOFRIMENTO DE ALGUÉM, EM VEZ DE SE CONCENTRAR NO SEU. CHEGA DE CHORAR TANTO POR SI PRÓPRIA E TRATE DE DAR UMA OLHADA PELAS REDONDEZAS. AFINAL DE CONTAS, OS SOFRIMENTOS DOS OUTROS NÃO SÃO TÃO DIFERENTES ASSIM.
'HÁ APENAS UMA SOLIDÃO NA VIDA', PENSEI, 'E ESTA É A SOLIDÃO DE TODO MUNDO.' ''

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