06/03/2017

A Filha do Silêncio

De Morris West
Peguei pelo título mesmo, me atraiu. E Morris West já era um daqueles nomes que eu tinha armazenados no fundo da mente sem saber de onde, então quando vi, resolvi tirar a prova.
A história se passa numa aldeia interiorana da Itália, San Stefano, onde os moradores se conhecem de longa data e são cúmplices de vários acontecimentos marcantes do passado que todos procuram esquecer mas que, por vezes e por motivos muito fortes, voltam a fermentar na cabeça de todos. O livro é escrito em cima de um desses motivos: Anna Albertini.
Essa jovem de 24 anos, numa tarde qualquer na aldeia, chega depois de passar 16 anos longe desse seu local de origem, se dirige à casa do prefeito e o mata drasticamente com 5 ou 6 tiros; após isso, calmamente se dirige à delegacia da cidade e se entrega sem discussão.
Amarelo, uma presença constante em minha vida.
Mas por quê? É o que vamos descobrir ao longo do livro, juntos com o psiquiatra Landon que se dispõe a estudar a vítima em caráter emocional, e o advogado Carlo Rienzi, que se propõe a defendê-la numa causa perdida, tendo em vista esse ser um crime premeditado: a moça, ainda criança, havia escrito essa ameaça de morte ao prefeito na lápide do túmulo de sua mãe. Vendetta, a prática antiga de vingança na Itália.
O advogado Rienzi conta com a ajuda do psiquiatra Landon, que está visitando o sogro e mestre em direito de Rienzi, Ascolini. É através dos olhos de Landon que vemos se descortinar a convivência conflituosa dessa família cujo ciclo central é marido, mulher e sogro. Ascolini (sogro) criou a filha, Valeria (mulher), estendendo a ela todas as oportunidades de ter uma juventude coberta de prazeres e satisfações, para nutrir a falta dessas vivências em sua própria juventude agora deixada para trás. Tendo crescido com esse incentivo à libertinagem escancarada, Valeria pouco respeita e considera o marido Rienzi, que desrespeitado pela esposa e pelo sogro, decide se lançar no desafio de fazer a defesa impossível da jovem Anna, na tentativa de provar a todos seu valor como homem e profissional.
O caso inteiro da senhorita Albertini tem seus atrativos, seu suspense e suas tramar que atraem o leitor, e a defesa no tribunal se desenvolve de uma maneira empolgante que faz com que a leitura entre num ritmo alucinado no afã de saber o que vem em seguida; mas após algum tempo mergulhando nessas páginas, percebemos que o crime a ser explorado não passa de um bom pano de fundo para acompanhar as mazelas emocionais dessa família de relações complexas. A coisa toda fica especialmente interessante pois vemos tudo através da visão de um psiquiatra; isso rende inúmeras reflexões interessantes com as quais o personagem brinda o leitor, ao divagar sem cessar sobre essa família perturbada.
Outro ponto interessante são os embates morais a que somos expostos no livro, através dos questionamentos dos personagens envolvidos no drama da moça Albertini. Até onde a lei vem de encontro à justiça e até onde a justiça ultrapassa a lei, passando a ser ilícita? Quando um ato de justiça, com toda a sua razão de ser, suas motivações e seus pretextos deve ser punido porque não corresponde ao que dita a legislação? E mais, até que ponto os traumas e cicatrizes emocionais de alguém permitem que essa pessoa seja plenamente responsabilizada por atos que dizem respeito a esses traumas? Até que ponto um filho que mata um homem que matou sua mãe na sua frente pode ser punido por isso, essa atitude que lhe deixa marcas, problemas, instabilidade emocional e traumas intensos?
A condição de apatia e ingenuidade diante da vida que tomou conta de Anna após a morte de sua mãe toca o leitor. Ela é uma moça desatinada, sem vida, sem propósito e sem entendimento sobre o que é a realidade fora de sua sede de vingança contra o prefeito, já consumada. Após a morte que ela tanto quis executar para vingar sua mãe, após a realização de sua obsessão, Anna se encontra completamente vazia, perdida, sem uma razão de ser. Ela fez da vingança a realizar seu único motivo para viver e após uma coisa tão dramática, o que restaria?

‘’Até agora, eu jamais soube, na verdade, de coisa alguma... mesmo com respeito a mim. Enquanto Belloni estava vivo, as coisas pareciam ter sentido... Havia uma estreita e longa estrada, estando eu numa extremidade e Belloni na outra. Enquanto eu caminhava, sabia que, mais cedo ou mais tarde, eu o encontraria. Agora ele está morto, e não existe nada...’’

O livro trás um leque imenso de reflexões, e todas elas valem a pena, todas elas fazem com que a leitura não seja esquecível e fique pulsando na nossa cabeça por um bom tempo após sua conclusão. É tanta coisa na qual pensar, justiça, lei, problemas emocionais que geram doenças mentais, família, relações conflituosas... enfim, tanta coisa que fica difícil abordar tudo numa resenha. Também é um dos únicos livros que li em que um processo judicial decorre com ampla exposição ao leitor (acompanhamos todo o julgamento do início ao fim) e gostei muito disso.
Está recomendadíssimo pra quem curte um pouquinho de psicologia, famílias conturbadas, direito e questões legais e morais. Sério: leiam. É muito bom mesmo e essa minha primeira descoberta da escrita do autor fez jus à lembrança vaga que eu tinha do nome dele em minha memória, de algum lugar que não sei qual é mas que agora nem faz mais tanta importância assim.

‘’EIS UMA TRAGÉDIA DA CONDIÇÃO HUMANA: CADA UM DE NOSSOS ATOS, POR MAIS SIMPLES QUE SEJA, É CONTINGENTE DE OUTRO GESTO PASSADO E LANÇA NO FUTURO UMA RAMADA DE CONSEQUÊNCIAS. TALVEZ SE POSSA EXPIAR O PECADO, CONCEDER O PERDÃO, MAS AS CONSEQUÊNCIAS SE ESTENDEM, COMO O ENCRESPAR DAS ÁGUAS NUMA LAGOA INFINITA, COMO CORRENTES QUE SE MOVEM ETERNAMENTE NUM MAR SOMBRIO.’’

Nenhum comentário:

Postar um comentário