De Morris West
Peguei pelo título mesmo, me atraiu. E Morris West já era um
daqueles nomes que eu tinha armazenados no fundo da mente sem saber de onde,
então quando vi, resolvi tirar a prova.
A história se passa numa aldeia interiorana da Itália, San
Stefano, onde os moradores se conhecem de longa data e são cúmplices de vários
acontecimentos marcantes do passado que todos procuram esquecer mas que, por
vezes e por motivos muito fortes, voltam a fermentar na cabeça de todos. O livro
é escrito em cima de um desses motivos: Anna Albertini.
Essa jovem de 24 anos, numa tarde qualquer na aldeia, chega
depois de passar 16 anos longe desse seu local de origem, se dirige à casa do
prefeito e o mata drasticamente com 5 ou 6 tiros; após isso, calmamente se
dirige à delegacia da cidade e se entrega sem discussão.
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Amarelo, uma presença constante em minha vida. |
Mas por quê? É o que vamos descobrir ao longo do livro, juntos
com o psiquiatra Landon que se dispõe a estudar a vítima em caráter emocional,
e o advogado Carlo Rienzi, que se propõe a defendê-la numa causa perdida, tendo
em vista esse ser um crime premeditado: a moça, ainda criança, havia escrito
essa ameaça de morte ao prefeito na lápide do túmulo de sua mãe. Vendetta, a prática antiga de vingança
na Itália.
O advogado Rienzi conta com a ajuda do psiquiatra Landon,
que está visitando o sogro e mestre em direito de Rienzi, Ascolini. É através dos
olhos de Landon que vemos se descortinar a convivência conflituosa dessa
família cujo ciclo central é marido, mulher e sogro. Ascolini (sogro) criou a
filha, Valeria (mulher), estendendo a ela todas as oportunidades de ter uma
juventude coberta de prazeres e satisfações, para nutrir a falta dessas
vivências em sua própria juventude agora deixada para trás. Tendo crescido com
esse incentivo à libertinagem escancarada, Valeria pouco respeita e considera o
marido Rienzi, que desrespeitado pela esposa e pelo sogro, decide se lançar no
desafio de fazer a defesa impossível da jovem Anna, na tentativa de provar a
todos seu valor como homem e profissional.
O caso inteiro da senhorita Albertini tem seus atrativos,
seu suspense e suas tramar que atraem o leitor, e a defesa no tribunal se
desenvolve de uma maneira empolgante que faz com que a leitura entre num ritmo
alucinado no afã de saber o que vem em seguida; mas após algum tempo mergulhando
nessas páginas, percebemos que o crime a ser explorado não passa de um bom pano
de fundo para acompanhar as mazelas emocionais dessa família de relações
complexas. A coisa toda fica especialmente interessante pois vemos tudo através
da visão de um psiquiatra; isso rende inúmeras reflexões interessantes com as
quais o personagem brinda o leitor, ao divagar sem cessar sobre essa família
perturbada.
Outro ponto interessante são os embates morais a que somos
expostos no livro, através dos questionamentos dos personagens envolvidos no
drama da moça Albertini. Até onde a lei vem de encontro à justiça e até onde a
justiça ultrapassa a lei, passando a ser ilícita? Quando um ato de justiça, com
toda a sua razão de ser, suas motivações e seus pretextos deve ser punido
porque não corresponde ao que dita a legislação? E mais, até que ponto os
traumas e cicatrizes emocionais de alguém permitem que essa pessoa seja
plenamente responsabilizada por atos que dizem respeito a esses traumas? Até
que ponto um filho que mata um homem que matou sua mãe na sua frente pode ser
punido por isso, essa atitude que lhe deixa marcas, problemas, instabilidade
emocional e traumas intensos?
A condição de apatia e ingenuidade diante da vida que tomou
conta de Anna após a morte de sua mãe toca o leitor. Ela é uma moça desatinada,
sem vida, sem propósito e sem entendimento sobre o que é a realidade fora de
sua sede de vingança contra o prefeito, já consumada. Após a morte que ela
tanto quis executar para vingar sua mãe, após a realização de sua obsessão,
Anna se encontra completamente vazia, perdida, sem uma razão de ser. Ela fez da
vingança a realizar seu único motivo para viver e após uma coisa tão dramática,
o que restaria?
‘’Até agora, eu jamais
soube, na verdade, de coisa alguma... mesmo com respeito a mim. Enquanto
Belloni estava vivo, as coisas pareciam ter sentido... Havia uma estreita e
longa estrada, estando eu numa extremidade e Belloni na outra. Enquanto eu
caminhava, sabia que, mais cedo ou mais tarde, eu o encontraria. Agora ele está
morto, e não existe nada...’’
O livro trás um leque imenso de reflexões, e todas elas valem
a pena, todas elas fazem com que a leitura não seja esquecível e fique pulsando
na nossa cabeça por um bom tempo após sua conclusão. É tanta coisa na qual
pensar, justiça, lei, problemas emocionais que geram doenças mentais, família,
relações conflituosas... enfim, tanta coisa que fica difícil abordar tudo numa
resenha. Também é um dos únicos livros que li em que um processo judicial
decorre com ampla exposição ao leitor (acompanhamos todo o julgamento do início
ao fim) e gostei muito disso.
Está recomendadíssimo pra quem curte um pouquinho de
psicologia, famílias conturbadas, direito e questões legais e morais. Sério:
leiam. É muito bom mesmo e essa minha primeira descoberta da escrita do autor
fez jus à lembrança vaga que eu tinha do nome dele em minha memória, de algum
lugar que não sei qual é mas que agora nem faz mais tanta importância assim.
‘’EIS UMA TRAGÉDIA DA CONDIÇÃO HUMANA: CADA UM DE NOSSOS
ATOS, POR MAIS SIMPLES QUE SEJA, É CONTINGENTE DE OUTRO GESTO PASSADO E LANÇA
NO FUTURO UMA RAMADA DE CONSEQUÊNCIAS. TALVEZ SE POSSA EXPIAR O PECADO,
CONCEDER O PERDÃO, MAS AS CONSEQUÊNCIAS SE ESTENDEM, COMO O ENCRESPAR DAS ÁGUAS
NUMA LAGOA INFINITA, COMO CORRENTES QUE SE MOVEM ETERNAMENTE NUM MAR SOMBRIO.’’
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