13/03/2017

Zona Morta

De Stephen King
Nunca consigo ficar indiferente a um livro do titio King. Jamais terminei uma de suas leituras com um sentimento de vazio ou despropósito deixado pelas páginas. Seus livros sempre me marcam, seus livros sempre me tocam, sempre me envolvem, sempre fazem diferença. Sempre fico louca a cada página, alucinada querendo saber no que tudo vai dar. Não foi diferente com esse.
John Smith era um cara como qualquer outro, descontraído, divertido, animado, faceiro com a vida, tinha trabalho, namorada, amigos e era amado pelos pais; ele só tinha um diferencial: de vez em quando, tinha algumas intuições sobre as coisas. Coisas pequenas, golpes de sorte que o faziam acertar os números de uma aposta, por exemplo. Era curioso mas era coisa pouca...até que ele sofre um acidente de carro em que três pessoas morrem e que o deixa em coma durante quatro anos. Quando ele acorda (um milagre TOTAL, ninguém esperava) não é mais coisa pouca. Além de ter que lidar com o baque enorme de saber que perdeu quatro anos de vida que passaram em branco, como se não existissem, ver o próprio corpo alterado porque definhou com músculos inutilizados durante anos e ter que enfrentar um mundo novo em que seus pais não são mais os mesmos, a mãe enlouqueceu e virou uma fanática religiosa e a namorada agora está casada com outro homem e tem um filho, Johnny agora é dotado de um estranho poder que, ele passa a perceber, se assemelha mais a uma maldição: ao tocar pessoas ou objetos, ele tem lapsos de informações sobre o passado e, às vezes, premonições sobre o futuro de tais pessoas e objetos. Ele pode saber que a casa de alguém está pegando fogo ao tocar a pessoa ou a quem pertencia certo objeto e como/onde o dono está, por exemplo (os dois casos ocorrem no livro). Além disso, há certas informações (como o formato de um carro ou a imagem de um camelo) já aprendidas na vida que ele não consegue acessar e que ficam numa parte da mente dele que ele passa a chamar de zona morta (se você for muito inteligente vai perceber que é isso que dá nome ao livro).  
John entra em transe e começa a destilar informações inconscientemente quando esses lapsos o acometem. Logicamente, esse tipo de dom não tarda a chamar a atenção de todos que o cercam e até mesmo de quem nunca o viu. Após alguns desses eventos mediúnicos que acabaram vindo a público (óbvio, o ser humano não resiste a uma fofoca sobre algo intrigante e desconhecido), a história desse moço que acordou de um coma com superpoderes logo vira conhecida na cidade e no país e ele passa a ser assediado. A cada novo evento, um rebuliço o cerca e ele precisa largar as coisas que tem, mudar de cidade e sumir do mapa, para tentar ter uma vida normal. É numa dessas idas e vindas que, ao tocar a mão de um político em ascensão, ele tem uma premonição que exige que ele tome um rumo inusitado e surpreendente que muda não só o seu destino, mas do mundo inteiro.
Vou parar com as informações sobre o enredo por aqui, pra não dar um spoileraço gigantesco, certo? Stephen King, mais uma vez, conseguiu me prender do início ao fim, e conduzi a leitura inteira de um jeito inebriante e vertiginoso. Lia babando de uma página a outra, fascinada e ansiosa por saber no que tudo aquilo ia dar. Esse é um daqueles livros que, repetindo tantos clichês, enlouquecem o leitor que fica extasiado de um jeito alucinante, sem conseguir largar as páginas e pulando de uma a outra como quem precisa da continuação da história pra respirar e continuar vivendo. Ele segura e desenvolve a coisa toda com uma maestria incrível, de modo que o livro, em nenhum momento, se torna cansativo e desinteressante: você sempre quer mais. E ele dá.
Ele me tocou muito e teve um daqueles finais que eu aprendi a esperar do S.K.: agridoce, melancólico, dramático e marcante, que deixa uma dor no peito e uma saudade que nos acompanha durante muitas outras leituras. King é mestre em nos deixar com ressacas literárias e isso se repete. Faz uns dias que li e meu coração ainda pesa quando penso no que conheci nessas páginas, em seu início, meio e, principalmente, fim. [Tá, AGORA parei de falar do final, juro.]
Não é só no suspense da narrativa e na criatividade do enredo que o livro se faz bom, ele também faz a gente refletir em diversos aspectos. Além de nos fazer ver quanto a vida de pessoas que se destacam das demais por alguma diferença é alterada em função de qualquer coisa que delimite uma linha, mesmo que tênue, entre o normal e o diferente, fazemos conjecturas sobre como lidaríamos com a capacidade especial que Johnny tem. Para que usaríamos esse dom? Salvar vidas, impedir catástrofes ou ganhar na mega-sena? Fugir do mundo pra continuar levando uma vida normal ou exercer a capacidade notável que Deus ou o destino, chame do que quiser, colocou em suas mãos – coisa que implica em todas as suas estruturas sendo modificadas? E como lidaríamos com alguém que, ao tocar a nossa mão, pudesse saber uma infinidade imprevisível de coisas sobre nós? No livro as pessoas passam a ter medo e receio de se aproximar de John e se deixar ser tocadas por ele. Acho que eu seria como elas, também – o medo de ter trechos da minha vida revelados a outrem é uma coisa real.
O livro nos faz pensar na sociedade, em como ela lida com o diferente e em como o diferente é capaz de alterá-la. Ele não tem só um ápice (que nessa resenha eu marquei como os resultados do aperto de mão com o político), mas uma série de eventos de importância igual que acabam culminando nessa última experiência, sem fazer com que as anteriores fiquem ofuscadas. Todas nos marcam e todas fazem o enredo ganhar peso.
Outra coisa interessante que me fez pensar muito foi a experiência de Johnny ao acordar depois de quatro anos no escuro, quatro anos perdidos numa cama, inconsciente. Minha relação com o tempo é meio conturbada, acho que ele anda rápido demais e o que quero fazer dele exige uma carga extra que ele não me concede. A vida passa rápido, sei disso e isso me entristece, então fiquei pensando em como eu lidaria com essa situação. Imagina acordar, da noite pro dia, quatro anos mais velho. Não são vinte ou trinta, eu sei. Mas são quatro, e dá pra fazer MUITA coisa nesse intervalo de tempo. Dá pra começar e concluir uma faculdade, aprender um idioma novo, aprender a tocar um instrumento, fazer amigos e conhecer o amor da sua vida...imagina perder essa chance? Imagina perder quatro anos de oportunidades... Imagina ficar no escuro, em cima de uma cama, inconsciente por um tempão todo desses. Imagina acordar num mundo que não é mais o mesmo, em que o presidente e o cenário político mudaram, em que leis foram criadas e outras esquecidas, em que amigos e parentes seus adoeceram, morreram e você não viu, em que o amor da sua vida (porque Johnny só teve um) está com outra pessoa e não pode ficar mais com você. É tudo muito assombroso. E tudo acontece com Johnny. Stephen King nos faz sentir com nitidez toda a dor do personagem ao saber o que perdeu, todos os conflitos internos pelos quais ele passa em função do pedaço de vida que passou e ele não pôde viver. Isso dói; dói nele e dói na gente, porque podemos sentir.
Tive uma ótima leitura com esse livro, tive belos momentos de lazer embalados pelo ritmo frenético dos acontecimentos, tive minha mente estimulada por todo o suspense que culminou no desfecho final, tive horas acompanhadas por personagens incríveis pelos quais me apaixonei (Johnny: eu casava), e tendo acesso a um dos universos de uma das mentes livrísticas mais interessantes que conheço, e tive uma certeza e um medo: não quero perder um minuto sequer da minha vida, mas tenho receio de já estar fazendo isso, todos os dias um pouquinho.

“Tocar nas roupas das pessoas e de repente conhecer seus pequenos temores, pequenos segredos, seus insignificantes triunfos – isso era anormal. Era um dom anormal, era uma maldição.”

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