07/07/2017

O Senhor das Moscas

De William Golding
Lembro de quando ouvi o nome desse livro ser citado pela primeira vez. Foi num seriado (que não recomendo) que girava em torno da vida de colegiais, e um certo grupo, em dada cena, estava comentando sobre ele em meio às tramas que se desenrolavam no enredo da série. Deve ser um porre, eu pensei, porque ficou claro que era um daqueles clássicos obrigatórios que os professores pedem e você já vai ler com receio. Associei O Senhor das Moscas a Dom Casmurro, por exemplo, logo de cara, porque a respeito do segundo, entre os que gostavam e entre os que detestavam, um pensamento imperava em comum acordo: é meio maçante.
Não achei O Senhor das Moscas maçante e acabei lendo ele em uns três dias. Reagi positivamente a ele - talvez porque minhas expectativas iniciais a respeito não eram muito grandes; isso começou a mudar quando, na orelha do livro, vi uma frase que o Sthepen King disse sobre ele com comentários lisonjeiros. Como boa seguidora do King, nunca me decepcionei com uma indicação dele (A Passagem (!<3!<3!) e O Clube Mefisto entre meus favoritos estão aí pra confirmar isso - sério, LEIAM) e já comecei o livro achando que alguma coisa boa eu ia encontrar, sim.
Em Senhor das Moscas somos apresentados a um grupo de crianças inglesas (apenas meninos) que caíram de avião em uma ilha deserta e ficaram alienadas lá sem a supervisão de nenhum adulto, uma vez que nenhum maior de idade sobreviveu.
Naturalmente apreensivos e assustados, as crianças começam a se adaptar àquela nova realidade escolhendo um líder geral, Ralph, e o líder dos caçadores, Jack, dois meninos de personalidades um tanto antagônicas. Eles começam a construir abrigos, catar cocos para beber água, explorar a floresta para procurar frutas e determinar algumas regras básicas de convivência, tal como só fazer as necessidades em pedras à beira do mar, longe dos abrigos e locais em que as refeições - precárias - ocorriam.
Uma dinâmica grupal se estabelece, e seus focos principais são Ralph, moço mais razoável e contido, Jack o intempestivo, supostamente destemido e radical e Porquinho, um menino acima do peso, que sofre de asma e é ''quatro olhos'', gozado pela maioria (tão zoado por todos que nem lembro o nome verdadeiro do infeliz, só tenho na mente o apelido pejorativo repetido incessantemente), mas o mais racional, criativo e articulado do grupo. Eles também se dividem entre os grandes, meninos acima de 8 ou 9 anos, creio eu (as idades não são especificadas), e os pequenos, crianças abaixo dos 7 ou 6 anos (creio eu^2); aos grandes, naturalmente, responsabilidades maiores, como a de caça, construção dos abrigos, manter a fogueira acesa para que a fumaça seja percebida por navios nas imediações e segurança mínima, são relegadas.
As coisas começam a se ordenar na medida do possível... até que Jack, menino responsável pela caça, começa a se empolgar excessivamente (extremista como ele é) com a coisa de caçar, matar, ferir, pintar a cara e agir como índios selvagens desvairados e contagia outros membros do grupo com o mesmo clima de ''libertação dos instintos'', de modo que as coisas tomam um ritmo e proporções alarmantes e fatais, submergindo os ilhados na selvageria pura.

Entendiam perfeitamente o quanto a pintura que cobria os rostos levava a uma libertação da selvageria.”

E acho que eu vou ter que para por aqui pra não largar spoiler por tudo.
Mas sobre o livro: analogias, ANALOGIAS EVERYWHERE.
Não sei quanto da mensagem é assimilada por cada um que lê o livro, mas a questão é que tudo aquilo, embora seja uma história de crianças perdidas em uma ilha deserta que aos poucos vão se deixando levar pela incivilidade e selvageria, não é bem uma história de crianças perdidas em uma ilha deserta que aos poucos vão se deixando levar pela incivilidade e selvageria. Tudo é uma grande alegoria que compara aquelas crianças perdidas a nós, cidadãos inseridos em sociedade e apresentando níveis diferentes de civilidade - todo mundo conhece um brutamontes ogro desgraçado dozinferno.
O livro é um clássico porque levante questões políticas e sociais muito pertinentes e, infelizmente, atemporais.
Não é difícil olharmos pra história e percebermos que o ser humano já demonstrou diversas vezes que, de vez em quando, perde o controle, age irracionalmente, põe seus semelhantes em perigo na busca pela afirmação de ideais doentios e extremos, se deixa levar por instintos primitivos e selvagens que sobem à cabeça, mata, guerreia, destrói, causa desordem e caos, quebra regras e simplesmente FERRA TUDO.
As crianças passam o tempo inteiro querendo agir com maturidade e ordem, ''como adultos'' (a frase ''vocês estão agindo como crianças!!!'' é repetida diversas vezes por Porquinho, o racional do grupo, e inserido num grupo de crianças, sendo ele próprio uma delas, a fala chama atenção e fica interessante observarmos as implicações dela), e cometem erros, deslizes e desastres porque supostamente ''não estão sabendo agir como adultos''; no entanto (e essa é talvez a principal mensagem do livro) seus erros, deslizes e desastres são exatamente o tipo de coisa que adultos inseridos em sociedade (talvez eu, talvez você) cometem - barbáries que a gente vê sempre quando liga os noticiários.
Mas essa não é a única questão que o livro levanta. Uma outra importantíssima é ''o homem é produto do meio ou o meio é produto do homem?'' Aquelas crianças estão lá, somente entre elas e compartilhando uma suposta inocência, num lugar a princípio pacífico em que não há violência na porta de casa, sem influência das drogas, da criminalidade e ''da maldade dos adultos''. Se não há nada de ''mal'' entre elas e no meio em que passam a viver, de onde toda a selvageria se origina? Essa questão é muito atual! Num tempo em que vemos crianças crescendo em meio ao tráfico de um lado e nos bairros mais chiques e ricos do outro, uma das reflexões do livro busca aproximar essas duas classes num mesmo patamar pautado em sua síntese humana. Às vezes fulaninho que sempre viveu no luxo, com educação, tendo do bom e do melhor e auxiliado por toda a sua estrutura social faz caquinha. O ser humano, às vezes, faz caquinha, e o livro e essa questão nos fazem pensar no quanto disso faz parte da nossa natureza. (Fazendo um adendo aqui, antes de alguém pensar em problematizar, pra dizer que óbvio que eu sei que a desigualdade impera e é ela que faz com que a meritocracia seja uma falácia; não ignoro isso, mas ainda assim sou capaz de ''tentar colocar as duas classes num mesmo patamar'' no intuito de me permitir analisar a questão. Paz.)

''-Estou com medo. Da gente. Quero voltar pra casa. Ah, meu Deus, quero voltar pra casa.''

Outra coisa (a última que vou abordar aqui, eu juro) engraçada de observar é nosso caráter hierárquico. Ok, eu sei que a ordem é jogada pela janela em determinado momento do livro, e que as regras são desrespeitadas, mas é interessante ver como um dos primeiros instintos das crianças foi eleger um líder entre si - coisa que certamente ocorreria entre os adultos também. Mesmo depois que a selvageria toma conta, tudo é encabeçado por uma pessoa que tem o auxilio das demais. E isso também engata outra questão (essa aqui é a última; antes eu tava mentindo pra você mesmo (desculpa)): a nossa instintiva luta pelo poder. Jack, o caçador, se considera um líder nato, mas as outras crianças escolhem Ralph (e depois dizem dane-se pro Ralph e vão com o Jack porque a vida é uma cretinice sem tamanho mesmo, mas prossigamos). Se Jack, contrariado e querendo mostrar toda a sua virilidade e superioridade (esses homi...), não afundasse até o pescoço na lama da gana pelo poder, digamos que muitas coisinhas ruins (BEM ruins - leia o livro) poderiam ter sido evitadas.
Basicamente, toda a cagada jogada no ventilador teria sido evitada se as crianças - e nós, a sociedade - tivessem um pouco mais de controle sobre essas três questões abordadas (parcamente) nessa resenha, especialmente porque elas se conectam de forma bastante direta.
E se você não gosta de ler livros pensando em fazer analises psicossociais em cima deles, vou tentar te convencer a ler O Senhor das Moscas só pra ficar sabendo das desgraças que acontecem e descobrir como Jack e mais alguns amiguinhos conseguiram dar um jeito de ferrar bastante a vida de certos coleguinhas e vizinhos de coqueiro.
Também vou tentar te deixar meio curioso(a) com essa frase, um prelúdio de pequenos acontecimentos sinistros que você não pode perder:

''COISAS HORRÍVEIS ACONTECERAM NESTA ILHA.''

(Ah, e o Stephen King gostou, né. Também é um bom motivo pra você levar esta bagaça pra casa.)

Esse livro faz parte da lista de 50 livros de 1900 que eu vou ler antes de morrer. Confira mais aqui (credo, parece até frase de comercial).

8 comentários:

  1. Logo que comecei a ler sua resenha, pensei que se trataria de um livro realmente maçante e já estava pronta para comentar que não seria um livro do meu interesse, no entanto, após o desenrolar da sua resenha, percebi que é um livro que traz bastante questionamentos e reflexões sobre a sociedade, algo que eu considero essencial; muitos possuem "pensamentos" sobre a sociedade sem realmente refletir sobre isso, e parece que o livro tenta ajudar nesse sentido.

    http://lenabattisti.blogspot.com.br/

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Ele é uma BAITA análise social mesmo, e fica nítido esse propósito didático do autor ao longo da trama.
      Também achei que seria maçante, mas acabei lidando com ele de forma bem fluída e li-o em três dias, então... :)

      Excluir
  2. Oi! Ufa, quantas reflexões! Adorei a sua análise do livro e os pontos que você abordou. Ainda não li esse livro e nem tinha intenção, mas agora preciso dele, rs. Adoro livros críticos e questões sociais, acho super importante que a gente leia e pense a respeito. O ser humano é encantador e assustador na mesma proporção, somos capazes de coisas medonhas e impensáveis! Como você destacou, nossa fome pelo poder ferra com tudo. Vou comprar!

    Ah! Adorei seu blog! Visitarei mais vezes.
    Beijos!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. É um livro legal pra ter na estante, um clássico que carrega um baita peso e importância.
      Seja bem-vinda e vou visitar teu cantinho também, certamente. <3
      Beijos. :)

      Excluir
  3. Eu quero imprimir a sua resenha e colar ela na testa. Não porque já tenha lido o livro e pensado a mesma coisa (embora você definitivamente tenha me convencido a dar uma chance), mas porque sua resenha é uma das melhores que eu li em muito tempo. Adorei a irreverência e análise psicossocial que você fez do livro. Seguindo, com certeza!
    Literalize-se

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Hahahahaha, amei e ri com teus comentários! ''Imprimir e colar na testa'' é uma frase que vivo repetindo pra mim quando leio coisinhas legais por aí! <3
      Muito obrigada pelos elogios à minha escrita, são os que mais prezo, de verdade. Obrigada, obrigada, obrigada!
      Eu já tinha ido ao seu blog algumas vezes e amo o nome dele! Você fez literatura virar verbo!!! <3
      Abraço! :)

      Excluir
  4. Então, você nem precisava enumerar esses últimos quesitos para eu querer ler o livro! ahaha Parece ser intenso e totalmente problematizador, como eu AMO!!!
    Sério, eu não imaginava que o livro tratava disso e nunca dei muita bola. Agora com sua resenha (fenomenal!!!) eu simplesmente, preciso! eheh
    E, não se preocupe em mentir para o leitor dizendo que precisa problematizar mais um pouco, eu li sua resenha num embalo tão bom que parecia que você estava aqui conversando comigo e eu super concordando (e falando um pouco mais dos seres humanos que somos)!
    Excelente resenha! <3
    xoxo

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que amorzinhos esses comentários, owwwwn! Hahaha
      Fiquei bem contente em saber que passei essa sensação de proximidade com a resenha! Obrigada!
      Beijo!!

      Excluir