26/11/2017

1Q84 - Trilogia

Do Haruki Murakami
Eu amo trilogias. Porque elas são compridas o suficiente para que a paixão do leitor pelos personagens, ambiente e história possa se estender para além de um único volume, durando mais, e porque elas são suficientemente curtas para limitar a possibilidade de se perderem no meio do caminho, virando enrolação nas mãos de um escritor que pode se deixar levar pela perspectiva de lucro ascendente e decida prolongá-las ad infinitum, até que ninguém aguente mais. Pra mim, trilogias são a medida certa para séries – livrísticas e cinematográficas (o que não quer dizer que eu necessariamente desgoste de sagas que vão além desse número, claro).
Quando vi os três livrinhos de 1Q84 posicionados lado a lado na estante da biblioteca, compondo um retrato coeso de tons harmônicos com as cores das capas que falam entre si, meu primeiro pensamento foi ‘’êêêê, uma trilogia!”, e logo levei os três pra casa dentro da bolsa, tudo no mesmo dia - aqueles trambolhos que juntos totalizavam 1280 páginas. Se é pra carregar peso, que seja em livros. 
Valeu a pena.
Os três volumes são de uma linguagem bem simples e direta, mas ainda assim encantadora e envolvente; na verdade, a simplicidade dela é o que faz muitos atribuírem essas duas características aos escritos de Murakami. Não foi diferente comigo: a narrativa me envolveu do início ao fim das mais de mil páginas, sem que eu conseguisse largá-las.
Temos dois protagonistas nessa história, com capítulos que se intercalam e cuja ligação só vamos descobrindo aos poucos: Aomame, uma profissional de educação física que trabalha dando aulas de exercício numa academia, e nas horas vagas olha só que divertido mata abusadores de mulheres (com a ajuda de uma senhora, pra quem ela dá aulas particulares, que administra um abrigo para mulheres vítimas de abuso e que dá o nome de cada alvo masculino a Aomame) com uma técnica especial que ela, profunda conhecedora do corpo humano, desenvolveu pra não deixar rastros; e temos Tengo, um professor de matemática que leva uma vida pacata, reclusa e desinteressante, e que é escritor nas horas vagas.
Os dois estão levando suas vidas cotidianamente (o cotidiano de Tengo é fazer cálculos e escrever, o de Aomame é matar pessoinhas), até que coisas estranhas acontecem, levando-os, quase sem que percebam, a um outro mundo, uma realidade paralela em que tudo parece exatamente igual mas as diferenças vão se revelando aos poucos e sutilmente, na forma de notícias e leis que mudam, por exemplo - num mundo o uniforme dos policiais é de um jeito e as armas são pistolas, no outro o uniforme muda e as armas são automáticas; num mundo determinado atentado ocorreu, dizimou tantas pessoas e saiu nos jornais, no outro, nunca se ouviu falar -, de modo que a percepção de troca de realidade não se dá de forma automática, e sim gradativa (ambos demoram um tempo considerável pra perceber que algo mudou).
A única característica gritante (que ainda assim demora a ser percebida) que delata essa troca de ‘’dimensão’’ é a aparição de uma segunda lua, menor e esverdeada, no céu. O mundo 1Q84 tem duas luas, mas só os protagonistas parecem atentar a esse fenômeno.
Aomame chega a essa realidade paralela quando pega uma escada secreta de emergência, no meio de uma avenida, para fugir do congestionamento e não se atrasar para um compromisso (uma execução), e Tengo parece migrar pra esse mundo depois que se envolve, como ghost writer, na publicação de um livro misterioso, A Crisálida de Ar, escrito originalmente por uma mais misteriosa (e peculiar) ainda garota de 17 anos, Fukaeri, cujo enredo se desenvolve num mundo que também tem duas luas – e muitas outras bizarrices mais, que aos poucos vão saindo das páginas de A Crisálida de Ar e se transportam à realidade dos nossos dois protagonistas.
Como o ano em que tudo acontece é 1984 (sim, há referências à obra de George Orwell), Aomame denomina essa realidade paralela de 1Q84, com ‘’q’’ de ‘’question’’ – porque questões (para nós e para os personagens) são o que não falta.
Nessa segunda realidade, os personagens de súbito se vêem envolvidos num conflito de vida ou morte com uma seita religiosa misteriosa, com domínios numa montanha reclusa próxima a Tóquio e cujos propósitos são desconhecidos, mas visivelmente malignos. Ao passo que esse antagonismo perigoso vai se desenvolvendo, a peculiar ligação entre Tengo e Aomame vai sendo revelada ao leitor. Tudo, não vamos esquecer, nesse mundo paralelo onde existem crisálidas de ar, um Povo Pequenino, maza e dotha, duas luas no céu, suspeitas de conspiração, Tengo e Amomame sem respostas, Fukaeri parecendo conhecer todas as respostas mas estranhamente indiferente a elas, uma realidade que parece seguir os contornos de uma obra fictícia, forças ocultas que se contrapõe e determinam o equilíbrio do universo e mistérios pra todo lado.
E é mais ou menos isso que a gente sabe. Se parece que as informações ficaram vagas e confusas demais, é essa a impressão que eu quero que você tenha, porque com esse propósito a narrativa é construída: 1Q84 é mistério do início ao fim. Os três volumes nos deixam com uma enxurrada de dúvidas, perguntas, questões, hipóteses e mistério, mistério, mistério. O livro inteiro nos envolve em especulações e é até surpreendente (parando pra pensar agora que já concluí a leitura) ver como, sem sanar quase nenhuma dúvida, Murakami conseguiu me prender até a conclusão. Lembro de estar na primeira centena de páginas do primeiro livro, com a maior cara de QQQQ e cheia de dúvidas, e olhar pras páginas finais pensando quando eu chegar aí já terei muitos questionamentos respondidos... Aí terminei o primeiro livro, comecei o segundo, terminei o segundo, comecei o terceiro e já tava no fim dele com a mesma cara de ?¿?¿?¿ do início.
Eu amo mistérios e a presença deles não me desencoraja a embarcar numa leitura, mas devo considerar o que, para muitos, pode ser encarado como um defeito ou buraco na narrativa: muitas dessas dúvidas que mencionei permanecem sem serem sanadas, em aberto, o que nos deixa com uma leve impressão de inconclusividade. Tá, mas onde foi parar tal personagem? E qual era o propósito daquelas pessoas? E o significado e origem de blablabla? Qual será o desfecho desse ponto da narrativa?, etc e tal. Vários mistérios permanecem insolucionados e isso pode ser frustrante pra muitos leitores, justificadamente. Mas ainda não sei se pertenço à parcela de insatisfeitos, porque embora eu queira muitas respostas, consigo conviver razoavelmente bem com a ideia de que 1Q84 foi escrito para deixar pontas soltas num mar de mistério que permite continuidade - nos pensamentos e especulações pessoais de cada um, porque a trilogia foi encerrada e ponto.
Ainda assim, ficaram muitas questões em aberto para que eu pudesse ignorar isso e excluir da resenha, e preciso considerar, sim, como uma falta porque ao embarcar no universo cheio de promessas construído por um escritor, sempre esperamos poder entender ou absorver o melhor possível toda aquela realidade subjetiva que nos é apresentada, e ao fim de 1Q84 esse processo não se completa de maneira satisfatória.
Mas, ainda assim, o romance é muito envolvente e a possibilidade de imersão que ele nos oferece me conquistou completamente e eu me esbaldei com ela, escalando a trilogia à minha lista de favoritos da vida.
A história é bastante excêntrica e atípica, fazendo com que a tarefa de tentar sintetizá-la se torne um tanto dificultosa, e isso também me cativou bastante.
Os personagens também me deixaram muito apaixonadinha: amei Aomame, amei Tengo e amei Fukaeri, demais.
Porém, ao contrário do que li em algumas resenhas internet afora, 1Q84 não é, para mim, impecável - embora isso não diminua meu favoritismo.
O livro tem várias cenas de cunho sexual e isso por si não é problema; muito pelo contrário, se numa trilogia de mais de mil páginas, com dois jovens protagonistas (geralmente sexualmente ativos), esse tema tão fundamental não fosse abordado em nenhum momento, aí sim seria estranho. Mas as primeiras cenas descritivas da vida sexual da Aomame (abordada sem pudores e com naturalidade, o que acho ótimo) me pareceram meio artificiais; me parece que naquele princípio (nos dois livros subsequentes não percebi isso) o autor não soube retratar com propriedade como funciona a cabeça de uma mulher em determinada situação. Mas essa foi uma percepção bem íntima e não me surpreenderia se mais ninguém tivesse sentido o mesmo. 
Outro probleminha foi a pseudo sexualização meio awkward (você vai ter que ler os livros pra entender essa) da Fukaeri, uma adolescente de 17 anos, retratada, em dado momento, como a típica garotinha pura (embora não fosse virgem), angelical, novinha, delicada, sem pêlos pubianos e extremamente atraente, que chega a transar com um cara mais velho de uma forma meio ritualística. Todo o caráter meio mitológico da trama, com seus elementos sobrenaturais, nos leva a justificar a cena como nada mais que um ritual necessário para o desenvolvimento da história, no fundo, despido de grandes apelos sexuais ("nem foi sexo de verdade"), mas é preciso reconhecer que essa é uma representação muito perigosa.
Também torci um pouco o nariz pra maneira com que uma personagem feminina vive muito em função da expectativa de reencontrar um personagem masculino com quem ela teve um contato ínfimo no passado. Esse sentimento é recíproco por parte do homem, mas não parece ser em mesma intensidade. Me pareceu inverossímil demais essa ligação aparentemente TÃO significativa e fundamental pra vida da moça, meio no estilo idealização do príncipe encantado, sabe? Ainda bem que existe certa mutualidade, porque do contrário seria reduzir muito e pra nada o valor individual da personagem. Enfim.
Essas questões à parte, Murakami nos oferece um universo apaixonante e peculiar, com situações, personagens e elementos únicos que realmente nos prendem até a última página e nos deixam querendo mais, sem parar de pensar sobre aquele monte de coisas loucas que lemos, não entendemos muito bem mas das quais não conseguimos nos desprender.
1Q84 não é uma trilogia com uma grande tirada no final, que nos passa algum ensinamento, moral ou mensagem de algum peso e significado especiais. Esses livros são uma ficção complexa escrita para o simples e puro deleite e lazer do leitor, e não deixam de ser menos notórios por isso. São livros espertos que você deve pegar por PURA diversão depois da leitura de vários clássicos pesados e cheios de ensinamentos atemporais em sequência, sabe?
Eu amei de paixão e ENGOLI os livros, querendo camiseta com estampa da trilogia, pote de pipoca com logo de 1Q84 e canecas temáticas, além de ficar com muita vontade de caçar outras obras do autor.
Se eu pudesse dar uma dica, diria pra fazer a leitura nas férias, quando você pode se dar ao luxo do total e completo descompromisso.
De um jeito ou de outro, leia 1Q84. Divirta-se.

"A LUA CONTINUAVA SILENCIOSA, MAS NÃO ESTAVA MAIS SOZINHA."

2 comentários:

  1. Oi!! (eu posso te chamar de Carol? #intima hehehe) Faz um tempo que eu to querendo ler essa trilogia (são mesmo fascinantes as bichinhas, difíceis de resistir); mas ao mesmo tempo rola um medinho de não entender, não entrar na maré, não entender a magia toda (coisa que sempre acontece quando a gente vê algum livro tão aclamado por aí). Não sei se vou saber lidar tão bem com as pontas soltas na história pq eu sou muito curiosa (haahaahahah), mas seu post me deixou mais inclinada a colocar eles na minha lista de leitura :D :***
    (e te respondendo: sim! você adivinhou certo heheh me formei em 2014!!! :D)
    <3

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    1. Claro que pode! Eu já tava te chamando de Emi na cara dura, hahaha

      Então tu já conhece a trilogia! Eu nunca tinha ouvido falar até dar de cara com ela na estante.
      A linguagem é bem simples meeeesmo, então ela em si não nos confunde, sabe. Mas tem um monte de elementos subjetivos que são coisa nova, e grande parte deles permanecem uma incógnita não por serem difíceis demais de compreender, e sim porque o cara acaba nem se dando ao trabalho de elucidá-los mesmo, haha
      Mas ainda assim foi uma leitura que eu gostei e aproveitei demais (como eu disse, viraram favoritos), então minha recomendação é se jogar sem medo. ;)

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