Do Stephen Crane
Eu gosto da temática guerra.
Não sei bem por quê; talvez por uma certa ligação pessoal consanguínea que eu
tenha com essa ambientalização, visto que meu opa (sobre quem ainda escreverei
por aqui) lutou na segunda guerra mundial e eu cresci rodeada por narrativas desse
acontecimento histórico, que aos meus olhos adquiria os contornos de um mito;
ou talvez seja porque eu encontro um prazer pessoal (já quase meio mórbido,
dadas as condições do mundo atualmente) em poder analisar a mente
humana: o que pensamos, o que sentimos e o que fazemos em consequência disso (psicologia não está entre minhas opções de carreira por acaso).
E em uma situação extrema (absurda, até) como a guerra, aspectos
mais fundamentais da nossa natureza afloram e se deixam mostrar. Então digamos que seria um objeto de estudo interessante.
É claro que eu sacrificaria a possibilidade de qualquer
olhar antropológico pela certeza de nunca mais chegarmos ao cúmulo do estrago
da bomba de Hiroshima, por exemplo (ou qualquer outra coisa ''aquém'' disso; qualquer conflito estúpido, qualquer guerra); mas enfim, acho que deu pra
entender o que eu quis dizer quando disse que é uma temática que me atrai.

Medo, tensão, consciência pesada, culpa, auto-recriminação e
um ruminar sem fim sobre atitudes tomadas no desespero... Era bem o
que eu estava procurando.
Mas, ao contrário do que eu talvez pudesse esperar se o
protagonista fosse um veterano de guerra - possivelmente mais experiente, mais maduro, mais
sereno -, os pensamentos do nosso soldado, embora tenham uma boa dose de
melancolia, correm de maneira mais crua e frenética, devido ao ambiente em que
ele se encontra e, especialmente, à sua imaturidade.
Porque o recruta Henry Fleming não passa de um garoto de
seus 18 anos, mais ou menos. Da mesma faixa etária que eu.
Ele é um menino um tanto imbecil e extremamente imaturo que
vai à guerra movido por desejos de grandeza (burrice, mas a gente releva), e
que, CLARO, leva um banho de água fria quando sente, nos primeiros dias, que
não existe nada de grande, nada de heróico, nada mítico, nada bonito em ter que
fazer cocô num balde no meio do mato, ver seus parceiros despencando mortos e
desfigurados ao seu lado e perder a sensibilidade dos dedos dos pés porque se
está com a mesma bota há quatro dias, por exemplo.
A visão romantizada dele sobre a guerra cai junto com os
corpos dos companheiros atingidos por tiros ou fragmentos de explosivos, e ele foge no primeiro combate que enfrenta,
passando todo o resto (até a guerra terminar ou até a própria morte, vou deixar
você descobrir) do conflito – porque ele não foge pra casa, mas pro meio da
mata, e depois acaba dando de cara com os companheiros novamente e voltando à
frente de batalha - se avaliando através dessa ótica: a de um cara que fugiu de
medo, antes de sequer se ferir e poder carregar um machucado de honra, um emblema vermelho (cor do sangue) da coragem que justificasse seu recuo.
Só que se você leu minha resenha até aqui, deve estar
pensando que o que se segue são reflexões muito profundas, inspiradas,
melancólicas e transcedentais, e é aí que preciso te lembrar do que falei três
parágrafos acima: Henry é só um jovem imaturo. O que ele pensa é o que os
jovens confusos e incertos que caíram naquele ambiente sem saber direito o que fazer e como
fazer certamente pensaram: um fluxo confuso de temores, desespero, picos momentâneos de coragem e bagunça; nada poético, bonito ou iluminado num nível nirvana.
Eu não acho que todos nós fôssemos ser imbecis como o Henry... porque, sinceramente, ele é um ser humano bem
medíocre - o que alguns chamariam de ‘’pobre de espírito’’. Não por
fugir do combate; isso eu acho totalmente compreensível - e até razoável. Mas por
várias atitudes estúpidas que ele tem.
Só que mesmo querendo sacudir o garoto e dizer que ele está sendo idiota, eu também entendo muito o coitado porque,
francamente, quem de nós agiria de maneira sensata numa situação absurda
(porque a guerra é absurda, no mais
puro sentido da palavra; quanto mais você pensa nela, mais se convence disso)
como aquela? Vários pensamentos que o acometem, por mais ridículos e ingênuos que sejam, certamente me acometeriam também.
Stephen Crane foi muito aclamado por esse livro, e muita
gente, ao lê-lo, concluiu automaticamente que ele era um veterano de guerra: ''só alguém que realmente viveu isso poderia
escrever de maneira tão realista'', disseram. O livro foi elogiado (inclusive
por veteranos) por seu realismo, mais do que tudo. Mas Crane, na verdade,
nasceu 19 (se não me engano) anos depois da guerra civil americana.
Estou dizendo isso
pra falar que acho que a essência do livro é esse realismo através do qual Crane quer que a gente veja tudo; essa coisa crua, seca, despida de qualquer romantismo heróico... esse negócio tosco que é o ser humano na
guerra.
Porque é assim. É tosco, é ridículo, é vergonhoso, é patético, é um retrocesso no nosso desenvolvimento enquanto civilidade - e, mesmo, humanidade.
Enquanto avançamos na leitura, nos incomodamos constantemente pensando como conseguimos ser tão estúpidos?
Mas, embora o autor queira que vejamos as coisas da maneira visceral que elas são, ele não esquece da essência do seu personagem, que é um jovem tolo.
Embora tudo seja patético do jeito que é, Henry se deixa levar pelo furor da batalha inúmeras vezes, indo, espiritualmente (ou de outro jeito que você queira nomear), do céu ao inferno, da glória à desgraça enquanto está na frente de batalha.
Em um momento ele está tremendo de medo e pensando em sair correndo porque viu colegas morrendo, pra no momento seguinte esquecer seu testemunho e se deixar levar por ideais de grandeza e heroísmo, só porque acertou um tiro no alvo certo ou foi elogiado pelos companheiros. Sua memória emocional é curta e ele não guarda as lições que aprende por muito tempo.
Porém, fica claro que isso é menos sobre o menino Henry (ou qualquer outro soldado avaliado individualmente através desse prisma) e sua infantilidade especificamente e mais sobre a natureza primitiva da guerra, esse espírito (nada metafísico) sanguinário que no calor da batalha toma conta de muitos e transforma o homem em besta - como eu não cansei de ouvir do meu opa.
Como eu já disse acima, não revelarei que fim levou Henry; se ele morreu ou saiu vivo da guerra. Mas a verdade é que a integridade física é o de menos e a tristeza do livro chega a nós especialmente através daqueles que findam a batalha com o emocional calejado e ideais deturpados, contaminados pelo sangue, pela violência e pela tragédia. Posso dizer que isso acontece com Henry também, reforçando a ideia de que ele não é uma criatura das mais sábias.
De qualquer forma, a história de um (com quem não se tem uma ligação mais íntima), num panorama geral, facilmente acaba adquirindo um peso secundário, em face a uma narrativa que destroçou milhares.
E ao fim daquelas poucas (nem trezentas) páginas, independente de termos acompanhado somente a trajetória de Henry, é o lamento pelos outros tantos milhares, desconhecidos e eternamente anônimos, que nos acomete.
''TINHAM ENSINADO AO JOVEM QUE, NA BATALHA, TODO HOMEM SE TRANSFORMA EM OUTRA COISA. PARA QUEM DEPOSITAVA SUA SALVAÇÃO NESSA METAMORFOSE, A ESPERA ERA UMA TORTURA.''
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