21/12/2017

Insana - Meu Mês de Loucura

Da Susannah Cahalan
Poucos temas me atraem tanto quanto psicologia e transtornos mentais diversos. Pode ser fácil me enquadrar na categoria "carniceira" (o pessoal que gosta de desgraças e que popula o mundo e a internet com suas câmeras sempre em prontidão para captar os perrengues alheios), e eu geralmente tenho um pouco de receio de dizer que esses são assuntos que me atraem, dada toda a dramaticidade que permeia qualquer tipo de condição psicologicamente instável, mas eu gosto dessa pauta por dois motivos: a mente humana é simplesmente fascinante demais pra ser desinteressante e não chamar minha atenção e conversas a respeito de problemas psíquicos normalmente trazem narrativas das quais posso me apropriar um pouquinho, colhendo relatos e experiências aqui e ali que me digam um pouco sobre meu próprio histórico psiquiátrico (acho que posso colocar as coisas assim).
Eu nunca tinha ouvido falar desse livro, nem de sua autora, mas quando soube do que se tratava, e que era uma história verídica descrita pela jornalista que a protagonizou, trouxe pra casa direto, numa locação assumidamente impulsiva da qual não me arrependi.
Susannah Cahalan era uma jovem (24 anos) e dedicada repórter do New York Post, renomadíssimo jornal americano, com diversos textos publicados e vários outros em andamento. Uma moça simpática, bem humorada, falante e extrovertida (como ela e os conhecidos enfatizam diversas vezes ao longo do livro), com uma família, amigos e colegas de trabalho que gostavam muito dela, um namorado companheiro e gentil, um apartamento em Manhattan que ela dividia com sua gata, e toda uma carreira pela frente, no exercício de uma profissão que ela amava de paixão.
Tudo ia bem até que um dia ela começou a ter uma preocupação obsessiva com supostos percevejos que contaminavam sua casa e a picavam sem que ela visse; uma paranoiazinha básica. Logo depois, num ritmo assustadoramente rápido, ela passou a manifestar uma série de sintomas desesperadores em sequência: começou a ouvir vozes, ter experiências extracorpóreas e apagões de memória que duravam horas; desenvolveu uma sensibilidade extrema à luz, tinha picos de humor bizarros que a faziam rir, chorar e ficar histérica num intervalo de três minutos e também passou a sofrer de diversas alucinações. Além disso, frequentemente era acometida por convulsões que deixavam seu corpo inteiro duro, com os braços esticados pra frente feito um zumbi e com baba saindo pela boca, como um cão raivoso. Todo um quadro digno de um filme de terror com possessões demoníacas.
Em semanas a Susannah como a conheciam se perdeu de vista, dando lugar a uma moça completamente psicótica que tinha surtos no meio da rua e em balcões de lanchonetes; passou a ter mania de perseguição, alegando que pessoas aleatórias e até o próprio pai (que ela não reconhecia) queriam lhe fazer mal, além de sofrer de paranoia, vendo seu rosto em noticiários e jornais que contavam ao mundo quão louca ela estava - isso e toda uma sorte de outros fenômenos psíquicos que obliteraram sua antiga personalidade. 
Mas as alterações não se restringiam ao seu psicológico, e Susannah também passou a apresentar problemas graves de coordenação motora (ela falava, andava e se movia como um paciente em estado avançado de alzheimer, segundo a descrição de alguns médicos que trabalharam em seu caso) e aparente retardo (não conseguia responder a questões simples, escrever, desenhar um relógio, nem resolver problemas matemáticos rudimentares). 
Nessa altura do campeonato, a família já tinha internado a moça num grande e conceituado hospital de Nova York (desculpa, não consigo escrever ''Iorque''; meu coração dói e a mão entorta), e os pais, alguns amigos e familiares e o sempre presente namorado Stephen (desenvolvi uma crush pelo Stephen, ignorem) se revezavam cuidando dela e tentando coibir os surtos que a faziam arrancar a aparelhagem hospitalar que a auxiliava (diversos fios na cabeça, soro na veia etc) e sair correndo numa tentativa de fuga alucinada, como uma verdadeira psicótica.
Em uma semana ela era uma jovem normal e saudável, e na outra uma desvairada sem qualquer controle sobre si mesma.
Susannah Cahalan ficou completamente insana.
Os médicos, familiares e às vezes até a própria Susannah, nos raros momentos em que ela se deixava entrever em meio a toda aquela loucura (momentos que reacendiam a esperança de seus próximos com a consciência remota de que ela ainda estava lá, em algum lugar), se jogaram numa busca frenética pela doença que havia impulsionado sua mente a esse poço de inconsciência sem fim, depois que os primeiros diagnósticos óbvios (esquizofrenia, transtorno bipolar e até mesmo alcoolismo) foram descartados, ao passo que seus sintomas transcendiam os dessas patologias e a cada dia uma nova característica peculiar e perturbadora de sua condição era revelada.
Numa corrida desesperada contra o tempo - pois a cada dia sua condição se agravava e seu cérebro definhava mais num ritmo extremamente nocivo e possivelmente fatal -, foram realizadas dezenas de exames, experimentos, testes, avaliações, tratamentos, remédios e mais exames e testes all over again, com toda uma equipe de vários doutores, enfermeiros e dois renomados psiquiatras que ficaram semanas buscando uma explicação para O QUE RAIOS TAVA ACONTECENDO COM A CRIATURA?!?!?! a misteriosa condição da moça, numa investigação médica ao melhor estilo House M.D. (o seriado, não por acaso, é citado várias vezes no livro - é o favorito dos pais da Susannah), da qual os antes tão familiares e agora tão distantes normalidade e pleno restabelecimento de sua saúde - e vida - dependiam.
E é nesse fluxo frenético que acompanhamos a história de Susannah em seu mês de loucura - embora a cronologia da narrativa acabe abarcando períodos anteriores e posteriores ao seu diagnóstico, preenchendo mais de um mês, naturalmente.
Eu me apaixonei pela escrita da Cahalan (e não CaLAhan, note-se), porque além de ser uma exímia escritora, ela tem aquele bom humor cru, sutil e flexível que torna qualquer conversa divertida e leve sem que a gente perceba. O livro, então, apesar de abordar um tema tão pesado e dramático, acaba fluindo, na maior parte do tempo, com certa tranquilidade e mansidão, sem que tenhamos grandes percalços durante a leitura - o que não significa, de maneira nenhuma, que ele seja superficial em qualquer sentido.
Foi uma experiência um tanto peculiar e até comovente pra mim acompanhar detidamente o processo psíquico que levou Susannah da condição de uma mente sã a uma mentalidade completamente desequilibrada e insana, porque, como dito, é uma narrativa da qual posso me apropriar um pouquinho (embora não em mesma intensidade, claro), e esse tipo de identificação torna a leitura mais complexa e pungente - e extremamente tocante. 
Entre outras coisas, senti um verdadeiro medo ao ler as precisas descrições que ela faz, nos primeiros capítulos do livro, dos momentos em que sentia que sua mente estava se perdendo e sua sanidade se esvaindo.
Mas pra fugir da exposição pessoal, vale constar que a autora levanta vários questionamentos pertinentes a respeito da manutenção do sistema de saúde (como um todo, não se restringindo ao panorama isolado de cada país - no qual se enquadraria o SUS brasileiro, por exemplo) nessa obra. 
Vou partir do pressuposto de que você, lendo isso aqui, tenha inferido automaticamente que Susannah se recupera de sua misteriosa doença (cuja natureza você vai ter que ler pra descobrir, mas já adianto que foi um diagnóstico ao qual os médicos chegaram por pouco, tamanha era a peculiaridade da coisa), visto que escreveu um livro sobre a experiência e obviamente não daria pra ter obtido êxito nessa tarefa se ela tivesse continuado com a cabeça na piração mucho lok@ do período em que esteve internada.
Mas fato é que após sua recuperação ela escreveu uma matéria no jornal em que trabalhava, intitulada "My misterious lost month of madness", na qual esse livro é inspirado. E o artigo obteve um retorno gigantesco e significativo que ajudou a intensificar as reflexões que ela começou a fazer sobre as falhas do sistema médico desde que reconheceu que sua recuperação, possibilitada pelo diagnóstico correto da patologia que a afligia, tinha sido um TREMENDO golpe de sorte, quase um milagre. 
Vários emails pipocaram em sua caixa de entrada, vindos de diversas pessoas desesperadas porque tinham familiares que apresentavam os mesmos sintomas que ela descreve em seu artigo e que haviam sido relegados aos limites de um diagnóstico generalista que não oferecia esperanças de recuperação (tal qual os primeiros diagnósticos que Susannah recebeu antes de seus pais baterem o pé e dizerem que VOCÊS VÃO DESCOBRIR O QUE TEM DE ERRADO COM A NOSSA FILHA, SIM, CARAMBA, PORQUE CRISE DE ALCOOLISMO É UMA PINÓIA), e que condenava essas pessoas a uma vida em sanatórios e clínicas especializadas em transtornos mentais.
Susannah foi uma privilegiada por ter recebido cuidados de dois especialistas cuja participação em seu tratamento foi crucial e definitiva para o sucesso de seus resultados, e ela ficou muito ciente desse privilégio. Então começou a se perguntar quantas pessoas sofrendo da mesmíssima doença estariam mofando como doentes irrecuperáveis em sanatórios ao redor do mundo. Quantas não tiveram a mesma sorte que ela, de serem tratadas num dos hospitais mais bem conceituados de seu país, com dois especialistas incríveis, e acabaram encerrando sua luta quando receberam um diagnóstico errôneo de esquizofrenia, por exemplo? E quantas morreram (porque a doença era sim letal) porque lhes foi dito que todos os sintomas eram sinais de uma crise de abstinência alcoólica e receberam um tratamento errado e voltado a isso, que não lhes deu qualquer chance de recuperação?
Ela contatou o médico que a dispensou dizendo que aquelas alucinações eram fruto do alcoolismo e percebeu que, tendo que atender um alto numero x de pessoas num pequeno número y de horas na clínica em que trabalhava, não era surpresa nenhuma que ele tivesse chegado a um diagnóstico raso, visto que só conseguia ter, sei lá, dez minutinhos rápidos, no máximo, de conversa com cada paciente. 
E essa situação não era um caso isolado, uma exceção; era a regra. Susannah, com a doença que teve, obtendo sucesso no tratamento e conseguindo a plena recuperação, é que era a exceção.
Seu artigo foi um marco na divulgação daquela doença, que abriu os olhos de muita gente (pacientes, familiares/amigos de pacientes e médicos) e, inclusive, chegou a salvar vidas - além de apontar falhas graves na esfera do sistema de saúde -, tamanha foi a importância de seu alcance.
São várias questões e a jornalista disserta com propriedade e lucidez sobre elas nos últimos parágrafos de seu livro, trazendo várias informações e dados esclarecedores.
Apesar de saber conduzir toda a narrativa a respeito do drama pelo qual sua doença a fez passar com leveza, a história de Susannah é um relato vívido e cruel, até visceral, difícil de encarar, porque ela expõe sem dó a fragilidade da nossa mente e quão sensível e suscetível ela é a danos estimulados por fatores externos e internos, aos quais muitos de nós estão sujeitos - e sobre os quais não temos controle algum.
Ao ler Insana, o sentimento que fica, além de uma sincera fascinação pela intrincada complexidade do nosso cérebro, é um pouquinho de medo e receio também, porque Susannah viveu mais de vinte anos sem saber que tinha um gatilho no cérebro pronto para ser puxado, desencadeando uma série de insanidades que imergiram sua mente numa loucura irrefreável que anulou sua existência durante um bom tempo, e não dá pra saber quantos de nós estão no mesmo barco... Sem falar daqueles que sabem já ter embarcado nesse curso há muito tempo.
Esse livro virou um favorito da vida pra mim, e apesar dos assombros - embora eu esteja muito inclinada a dizer que justamente por causa deles -, eu recomendo muito que você, seja lá quem for, leia já. ;)

A MENTE É COMO UM CIRCUITO DE LUZINHAS DE NATAL. QUANDO O CÉREBRO FUNCIONA CORRETAMENTE, TODAS AS LUZINHAS PISCAM E BRILHAM E ELE SE ADAPTA BEM O SUFICIENTE PARA QUE AS DEMAIS CONTINUEM ACESAS, CASO ALGUMA DELAS QUEIME - O QUE OCORRE COM CERTA FREQUÊNCIA. MAS, ÀS VEZES, DEPENDENDO DO PONTO EM QUE O DANO FOR CAUSADO, UMA ÚNICA LÂMPADA QUAIMADA É O SUFICIENTE PARA QUE TODO O FILAMENTO FIQUE NO ESCURO.”

2 comentários:

  1. BATE AQUI QUE EU TAMBÉM ADORO TEMAS PSICOLÓGICOS (quando "descobri" que queria medicina, jurava de pés juntos que seria psiquiatra -- agora não acho mais isso por estar em um tratamento psiquiátrico e ter me desiludido com a coisa, sabe? Mas ainda me interesso muito por neuro e psicologia).
    CHEGA DE FALAR DE MIM.
    PELO AMOR DE DEUS O QUE ESSA MOÇA TINHAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA?????????????????????????????????????

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    1. Eu também tenho (tinha?) essa intenção de ser psiquiatra, AMO. Mas isso que tu falou de se desiludir com a coisa quando você conhece ela de perto é muito real. Eu tava andando pelos corredores de um hospital esses dias toda faceira pensando em trabalhar lá, como criança com doce, sabe? Mas aí cheguei na ala de oncologia e vi toda aquela gente mal e pensei em quantos médicos passam por esse processo de "desencantamento", sabe?
      Mas em alguns (não todos) aspectos meu tratamento psiquiátrico me ajudou a me apaixonar ainda mais por essa área, porque eu conheci uma psiquiatra INCRÍVEL E MARAVILHOSA e só consigo pensar em tentar ser parecida com aquela mulher. <3

      A doença da Susannah fica no mistério MUAHAHA.

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