Da Svetlana Aleksiévitch
Comecei a ouvir sobre o trabalho da jornalista Svetlana há pouco tempo, quando li pela primeira vez artigos sobre seus livros-reportagem que contam histórias antes ignoradas pelo mundo e pelo entretenimento popular, publicados no Brasil só em 2016. Ela nos apresenta narrativas de pessoas de verdade que passaram por eventos reais, adquirindo uma carga de conhecimentos vívidos que só cabe aos protagonistas - muitas vezes vítimas - de experiências verídicas, as quais geralmente é difícil rememorar. A famosa literatura da vida real, um dos gêneros textuais que mais me atrai.
Eu logo soube que ia amar conhecer o trabalho dessa mulher e que afundar nesses textos e nessas histórias seria uma experiência única e fascinante; por isso, quase gritei quando vi esse livro perdido (e deslocado) nas estantes de ficção da biblioteca, e o trouxe pra casa ainda mais interessada (e até mesmo empolgada, admito) ao ver que se tratava desse evento tão marcante, memorável e cruel da história humana: a explosão na usina nuclear de Chernobyl, na Ucrânia (onde nasceu Svetlana), a poucos (ainda mais se levarmos em conta a rápida e letal disseminação radiativa) km da fronteira com a Bielorrússia (onde Svetlana cresceu), áreas então sob a jurisdição da União Soviética.

A história de Chernobyl é também a história de Svetlana. Entre as pessoas de Chernobyl (''o homem e a mulher de Chernoby'', que como uma entrevistada diz em dado ponto do livro, se apartam do resto do mundo, diferenciando a humanidade entre pessoas normais e pessoas de Chernobyl), também está ela.
''Se antes, quando escrevia os meus livros, eu observava o sofrimentos dos outros, dessa vez éramos, a minha vida e eu, parte do acontecimento. Fundiram-se numa só coisa, não havia distância.''
Num dos poucos, mas preciosos, momentos do livro em que a autora fala diretamente conosco, sem estar subentendida por trás da voz de um entrevistado, fica clara sua insatisfação com o que foi difundido e popularizado com maior abrangência sobre Chernobyl até então: ela não estava mais contente com artigos científicos recheados de termos e conceitos técnicos, com reportagens/filmes/documentários que alardeavam as consequências grotescas da explosão, reveladas através de deformidades e anomalias físicas, nem com os dados veiculados nas grandes mídias, cheios de números, porcentagens e nomes de autoridades governamentais e instituições. Svetlana queria contar ao mundo e escrever um livro sobre a história das pessoas, sobre o mundo que restou a quem ficou após o desastre, sobre o cotidiano daqueles que são lembrados todo dia de que sua terra abrigou o maior acidente nuclear da humanidade. Ela queria falar das pessoas, da história das pessoas, e não do átomo. E é por isso que ela escreveu esse livro.
Viajar entre essas palavras é uma experiência tocante e sensível, porque vemos o quanto a memória desse povo gira em torno desse evento ocorrido há mais de trinta anos, mas que é rememorado todo dia por aqueles que viram sua terra, tão amada e especial, se tornar venenosa e nociva em questão de horas. Essas vozes ecoam que Chernobyl não é lembrada só como um evento, um episódio, um ocorrido; Chernobyl virou a cultura dessa gente, algo em que pensam todo dia, uma consciência e lembrança constantes que carregam consigo pra cima e pra baixo - muitas vezes travestidas de medo e sempre com uma tristeza nostálgica.
Svetlana teve o cuidado de entrevistar toda a sorte de sobreviventes do desestre, para que o maior número possível de ângulos fosse abordado, resultando num panorama final bastante completo e diverso. É tão comovente transitar entre a história de esposas de bombeiros e liquidadores (responsáveis por eliminar os detritos radiativos da explosão) que pularam janelas, escalaram paredes e enfrentaram médicos e enfermeiras para cuidar de seus esposos moribundos no leito de morte, que padeceram de forma cruel e gradativa em sua frente; ouvir o lamento de mães que deram à luz filhos frágeis, doentes e cheios de anomalias, que morreram poucos dias depois ou que passaram a vida morando em hospitais, oscilando entre vida e morte; ler sobre crianças (há um capítulo inteiro, muito tocante, dedicado só às vozes delas) que deixaram pra trás, chorando inconsoláveis, seus bichinhos de estimação (cachorros, gatos, hamsters com comida pra dois dias na gaiola), que nunca mais reencontraram, porque não foi permitido levar animais, já contaminados pela radiação, na evacuação; saber de famílias que escreveram frases de despedida e lamento nas paredes de suas casas (''adeus, casa amada!''; ''se entrar aqui, pode levar tudo, só não machuque nosso gato''; ''essa casa querida pertenceu à família Petróvna''; ''sentiremos saudades''), antes de serem removidas da cidade; ler sobre a triste tarefa do membro de um grupo encarregado de matar todos os animais de grande e médio porte que ficaram na região (inclusive os bichinhos de estimação dos antigos habitantes), para que eles não levassem a radiação a outros lugares (um dos capítulos que mais me desgraçou); e, claro, saber também daqueles senhores e senhoras que amavam sua terra e se recusaram a deixar suas casas, brigando com unhas e dentes com os responsáveis pelo transporte dos moradores a outra região e esvaziamento da área.
Chernobyl abriga vários tipos; de relatos, de sentimentos, de histórias e de pessoas, e Svetlana fez um trabalho incrível captando e registrando a maior variedade de narrativas possível.
Outro aspecto a mencionar, que cito aqui resumidamente, é a negligência das autoridades soviéticas e de gestores da usina nuclear, que, "pra não causar tumulto e desespero", ocultaram informações cruciais dos habitantes da região, que só ficaram inteirados acerca da gravidade da situação quando vários danos à sua saúde já tinham sido provocados. Os primeiros bombeiros que se dirigiram ao "incêndio" não tinham ideia da nocividade do que enfrentavam, para eles era mais um um incêndio normal, e há vários relatos de poucos privilegiados que souberam quão severa a situação era e que saíram da cidade de antemão, sem terem a permissão de alertar os vizinhos para "evitar pânico", mas aflitos por ver crianças de famílias desavisadas brincando na terra e na água, ambas com contaminação avançada.
Viajar entre essas palavras é uma experiência tocante e sensível, porque vemos o quanto a memória desse povo gira em torno desse evento ocorrido há mais de trinta anos, mas que é rememorado todo dia por aqueles que viram sua terra, tão amada e especial, se tornar venenosa e nociva em questão de horas. Essas vozes ecoam que Chernobyl não é lembrada só como um evento, um episódio, um ocorrido; Chernobyl virou a cultura dessa gente, algo em que pensam todo dia, uma consciência e lembrança constantes que carregam consigo pra cima e pra baixo - muitas vezes travestidas de medo e sempre com uma tristeza nostálgica.
''Tchernóbil para elas não é uma metáfora ou um símbolo, mas a sua casa.''
Chernobyl abriga vários tipos; de relatos, de sentimentos, de histórias e de pessoas, e Svetlana fez um trabalho incrível captando e registrando a maior variedade de narrativas possível.
Outro aspecto a mencionar, que cito aqui resumidamente, é a negligência das autoridades soviéticas e de gestores da usina nuclear, que, "pra não causar tumulto e desespero", ocultaram informações cruciais dos habitantes da região, que só ficaram inteirados acerca da gravidade da situação quando vários danos à sua saúde já tinham sido provocados. Os primeiros bombeiros que se dirigiram ao "incêndio" não tinham ideia da nocividade do que enfrentavam, para eles era mais um um incêndio normal, e há vários relatos de poucos privilegiados que souberam quão severa a situação era e que saíram da cidade de antemão, sem terem a permissão de alertar os vizinhos para "evitar pânico", mas aflitos por ver crianças de famílias desavisadas brincando na terra e na água, ambas com contaminação avançada.
''Hoje, como eu entendo... Sim, podemos tirá-los [os pequenos, as crianças] do país e levá-los para se tratar. Mas como devolveremos a eles o mundo de antes? Como lhes devolveremos o seu passado? E o seu futuro?''
Há muitas outras facetas desse livro que não abordarei aqui com a devida atenção para que a resenha não fique inescrupulosamente grande. Mas além de não querer me alongar nesse texto, também reconheço que há muitas coisas entre essas páginas que precisam ser explorada por cada leitor individualmente. Essas histórias precisam ser lidas, e sabendo dessa necessidade não tenho a intenção de revelar todos os pontos aqui; você deve ler e conhecer essas narrativas por conta própria. As pessoas retratadas através dessas palavras e esse livro como uma obra integral merecem sua atenção.
Durante a leitura, uma coisa que me sensibilizou bastante foi perceber com certo assombro quão ignorante eu era da existência desse povo e dessas narrativas. Me senti quase negligente por desconhecer durante tanto tempo a história de um acontecimento tão significativo para a tragetória do mundo e da humanidade, porque ao fim desse livro algo que fica nítido para o leitor é a importância de saber sobre o que aconteceu em Chernobyl e sobre como isso afetou e continua afetando a vida de diversas pessoas. Devemos ter essa consciência.
Vozes de Chernobyl é uma obra tão, tão importante porque ela expõe o que antes esteve oculto, porque ela dá voz a narrativas silenciadas, porque ela tira das sombras rostos, nomes e histórias que antes eram desconhecidos e que precisavam vir à luz. Esse livro é uma parte (uma grande parte) de nós, a humanidade; uma fatia da nossa trajetória no mundo, um testemunho histórico de um evento que não pode ser esquecido e sobre o qual devemos refletir sempre, porque não é nada insignificante o que é tratado aqui: Chernobyl é como lidamos com o fim, com a guerra, com o apocalipse, com a morte, com a natureza e com nós mesmos, e essas questões acompanham a humanidade desde seus primórdios.
Vozes de Chernobyl é uma obra tão, tão importante porque ela expõe o que antes esteve oculto, porque ela dá voz a narrativas silenciadas, porque ela tira das sombras rostos, nomes e histórias que antes eram desconhecidos e que precisavam vir à luz. Esse livro é uma parte (uma grande parte) de nós, a humanidade; uma fatia da nossa trajetória no mundo, um testemunho histórico de um evento que não pode ser esquecido e sobre o qual devemos refletir sempre, porque não é nada insignificante o que é tratado aqui: Chernobyl é como lidamos com o fim, com a guerra, com o apocalipse, com a morte, com a natureza e com nós mesmos, e essas questões acompanham a humanidade desde seus primórdios.
Svetlana escreveu um daqueles emblemáticos livros que devem ser lidos e conhecidos por todos - pela realidade que ele carrega e pelo simbolismo atrelado a ela, com sua gama de significados.
Mas além disso, Vozes de Chernobyl é uma obra que, antes de ser lida, deve ser encarada, porque as ruínas que ela retrata refletem imagens projetadas pelo âmago de muitos de nós.
''ESSE LIVRO NÃO É SOBRE TCHERNÓBIL, MAS SOBRE O MUNDO DE TCHERNÓBIL. SOBRE O EVENTO PROPRIAMENTE, JÁ FORAM ESCRITOS MILHARES DE PÁGINAS E FILMADOS CENTENAS DE MILHARES DE METROS EM PELÍCULA. QUANTO A MIM, EU ME DEDICO AO QUE CHAMARIA DE HISTÓRIA OMITIDA, AOS RASTROS IMPERCEPTÍVEIS DA NOSSA PASSAGEM PELA TERRA E PELO TEMPO. ESCREVO OS RELATOS DA COTIDIANIDADE DOS SENTIMENTOS, DOS PENSAMENTOS E DAS PALAVRAS. TENTO CAPTAR A VIDA COTIDIANA DA ALMA.''
Estou com esse livro aqui em casa e meu marido devorou em poucos dias! Quero ler também, mas estou com tanto livro na fila que preciso me organizar para dar conta de tudo.
ResponderExcluirQue ótimo que teu marido leu, porque aí vai poder ser uma pessoa a mais te atazanando com elogios ao livro até você ler também, haha
ExcluirÉ um livro incrível que toca bastante o coração da gente e eu recomendo fortemente pra todo mundo. Quando a fila das tuas leituras andar, não esquece de dar uma atençãozinha a ele. ;) <3
Que indicação forte! Faz tempo que não caio em tamanhas reflexões ao ler uma resenha. Ca, só tenho a agradecer por essa indicação e por tantas entrelinhas cuidadosas e engrandecedoras. Lindeza!
ResponderExcluirsemquases.com
É um livro que nos faz pensar em bastante coisa meeesmo, tanto que tive que ter cuidado pra não me alongar demais na resenha. ;)
ExcluirE obrigada pelas palavras gentis. =} <3