26/01/2018

O Mundo Pós-aniversário

Da Lionel Shriver
Desde que li Precisamos Falar Sobre o Kevin, quando tinha uns 14/15 anos, Shriver tem sido uma autora por quem desenvolvi uma atração platônica que teve poucas chances de chegar a algum tipo de consumação, uma vez que não topei com mais de seus livros, embora nutrisse muita curiosidade por todos depois de ter achado o título que a consagrou uma obra-prima ou quase. Mas recentemente a biblioteca que frequento adquiriu novos exemplares, e entre eles eu encontrei esse aqui, felicíssima ao reconhecer o nome que encabeça a capa.
No mundo pós-aniversário conhecemos Irina McGovern, uma ilustradora infantil com um relacionamento de longa data (9 anos) com Lawrence, uma espécie de consultor em terrorismo formado em relações internacionais, e sua recente atração por Ramsei Acton, um jogador de sinuca bem-sucedido e amigo sazonal do casal, com quem eles saíam anualmente (e ritualisticamente) para uma comemoração discreta do aniversário de Acton.
Em um ano, no entanto, Lawrence estava viajando como conferencista e, não podendo prestigiar a data com o amigo, incentivou Irina, a princípio hesitante, a fazê-lo. Depois de um jantar inesperadamente agradável, Irina e Acton vão para a casa do segundo fumar um baseado, e em dado momento ela sente um intenso desejo de beijá-lo; nisso ela percebe, num lapso de reflexão filosófica que é o momento mais decisivo de nossa personagem, que está diante de uma grande encruzilhada, talvez a maior em que já esteve, e que dependendo da atitude que escolher tomar, sua vida poderá trilhar dois caminhos muito diferentes entre si, que mudarão tudo.
Beijar ou não o jogador de sinuca e encarar todas as alterações que essa decisão acarretaria?
E esse é o fim do primeiro capítulo do livro; saímos sem saber que atitude Irina adotou. Nos capítulos seguintes descobrimos que Shriver decidiu desenvolver as duas narrativas imediatamente possíveis, dividindo o livros em duas realidades paralelas que acompanhamos intercaladamente capítulo a capítulo: em uma Irina beijou Acton e na outra ela resistiu a esse impulso e voltou para Lawrence com seu relacionamento imaculado, livre de grandes pesos na consciência.
A partir disso Shriver começa a desenvolver todas as nuances, contrapontos e diferenças que esses dois caminhos (e por que não vidas?) diferentes rendem à existência de Irina, um de cada vez, no que quase poderíamos definir como dois romances, ambos plenos e cheios de minúcias, dentro de um.
Já escrevi por aqui que gosto de livros que falam sobre a vida, e logo em seguida acrescentei que sim, sei que isso é ridiculamente vago e imensamente abrangente; mas, por incrível que pareça, às vezes encontro obras que eu não poderia categorizar de maneira melhor. Esse livro é uma delas.
Eu sou completamente fascinada por reflexões que abarcam todos os aspectos possíveis da nossa existência; acho lindo pensar na vida e em como tudo isso é incrível, louco e impressionante, em como a experiência de cada um nessa terra é rica em nuances, tonalidades e possibilidades diferentes, e O Mundo Pós-aniversário fala justamente sobre esses diferentes viéses e perspectivas. Sobre os vários ''e ses'' que não podemos experienciar com liberdade em virtude das limitações óbvias a que estamos sujeitos na única narrativa possível que temos: a narrativa de nossa escolha. O caminho que escolhemos seguir.
Já nesse livro a abordagem dessas múltiplas alternativas é possível, e é isso que Shriver faz na vida da protagonista. Descobrimos os desdobramentos que se apresentariam se todos os âmbitos daquele ''e se" (e se eu beijá-lo? E se não beijá-lo?) fossem efetivamente incorporados à vida de Irina, e com isso é natural adotarmos essa reflexão e enxergarmos a questão através de uma ótica pessoal (e se eu tivesse feito aquilo? E se não tivesse? E se minha decisão tivesse sido outra?).
O Mundo Pós-aniversário é sobre o que aconteceria se você dobrasse naquela esquina da vida com a qual se deparou anos atrás, mas pela qual não resolveu seguir, escolhendo um caminho inverso. Entendem?
Fiquei fascinada.
Mas saindo um pouco do enredo pra falar da escrita em si, devo dizer que Lionel Shriver verdadeiramente me impressiona com a sagacidade e inteligência com que desenvolve seus romances. Porque ela sabe construir seus personagens como ninguém, de uma forma tão plena e minuciosa, tão rica em pormenores, que é absurdo pensarmos que eles não são pessoas de verdade com quem ela topou e a quem observou detidamente para transpô-los aos seus livros. A personalidade de Irina é tão completa, tão detalhada e minuciosa, que chega a ser incrível.
Essa característica dos livros dela me deixa completamente encantada, mas também é o que me faz hesitar na hora de recomendá-los a outras pessoas, porque obras da Shriver não são bem para leitores iniciantes ou para qualquer leitor, em qualquer momento. Seus livros são densos, muito, muito, muito densos, e embora muitas coisas aconteçam assegurando um dinamismo à narrativa, o ritmo é diferente, porque ela destrincha tudo que tem para destrinchar nas personalidades de seus personagens e no contexto que os envolve.
Um livro que nas mãos de algum autor genérico teria 150 páginas, tem 300 nas mãos de Shriver, porque ela não deixa passar nada. Acho isso maravilhoso - sou uma adepta inveterada dos textões.
A inteligência, a maestria, o cuidado e a cabeça que essa mulher tem que ter pra escrever assim me impressionam muito.
Na história de Irina é difícil não torcermos por seu relacionamento com um cara entre os dois, e embora meus dedos cocem para escrever prolongadamente sobre isso, vou evitar muitas palavras para não largar spoilers. Mas devo dizer que meu coração ficou dividido e foi jogado de um lado para o outro durante todo o romance, porque é muito difícil, com personagens tão complexos e humanos assim, simplesmente odiarmos ou amarmos de todo quem quer que seja.
Lawrence é centrado, disciplinado, profissional, responsável e competente, mas também é muito fechado e me frustrava demais a frieza dele no relacionamento, a falta de beijos, de carinho e de demonstrações de afeto e a resoluta determinação a não falar dos sentimentos. Ramsei é o contrário de tudo isso: extrovertido, descontraído, carinhoso, intempestivo e baderneiro (Ramsei fazendo folia e ensinando as crianças a rasgar os pacotes de presentes no natal como se não houvesse amanhã, quando a família de Irina costumava guardá-los intactos para o ano seguinte, é o meu tipo de pessoa).
Apesar de ter simpatizado mais com um do que com outro (influenciada pelo que parece ter sido intenção da autora), de um jeito estranho e inconsciente eu acabava torcendo para os dois, para que ambos os relacionamentos dessem certo - o que é ridículo, porque naquelas circunstâncias eles eram mutuamente excludentes. Acontece que sempre torço pelas pessoas, e imaginar tudo que Irina não viveria com um se escolhesse o outro, todas as coisas bonitas e queridas que ela desconheceria, me partia o coração, porque me fazia pensar em tudo que eu também perdi e que todos perdemos - que temos que perder - porque na vida não podemos ter tudo, não é mesmo? Isso me comovia demais, sabe? Pensar nesses vários "e ses", nessas várias vivências que ignoramos.
O livro de Shriver é rico e multifacetado, e além de nos apresentar uma história interessante e memorável, ele é pincelado por várias reflexões e apontamentos que a autora faz, como é seu costume, a respeito da sociedade, dos sentimentos, de relacionamentos inter e intrapessoais, da vida, do universo e tudo mais. Eu diria que é psicanálise (A M O) com mais um monte de outras coisas juntas. E recomendo fortemente, porque nos faz pensar.
Mas não se engane, por mais genial que seja, a princípio esse parece ser só mais um livro muito inteligente, sagaz e bem elaborado, mas é provável que - mesmo que você estiver esperando e se preparando pra isso, como bom conhecedor do estilo da escritora e como eu tentei fazer, falhando miseravelmente - ele atinja seu coração impetuosamente e arrase muito seu emocional no final. Duas vezes. Como só os bons dramas fazem... Ou, melhor dizendo, como só a Shriver faz.

''A IDEIA É QUE A GENTE NÃO TEM APENAS UM DESTINO. [...] MAS, SEJA QUAL FOR A DIREÇÃO TOMADA, HAVERÁ ALTOS E BAIXOS. A GENTE LIDA COM UMA SÉRIE DE COMPENSAÇÕES, E NÃO COM UM RUMO PERFEITO, COMPARADOS AO QUAL TODOS OS OUTROS SERIAM UMA PORCARIA. [...] HÁ VANTAGENS E DESVANTAGENS VARIÁVEIS EM CADA UM DESSES DOIS FUTUROS QUE RIVALIZAM ENTRE SI. MAS EU NÃO QUERIA UM FUTURO RUIM E UM BOM. EM AMBOS, TUDO DÁ CERTO, NA VERDADE. ESTÁ TUDO CERTO.''

(Sério, pensa numa bad. Depois de Kevin, eu tava me preparando tanto - e com razão - pra levar bomba e sair arrasada que chegou um momento eu que fiquei com verdadeiro medo de abrir o livro, já pressagiando um final que ia me derrubar emocionalmente. E não deu outra. No fim, Shriver é sempre certeira.)

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