25/02/2018

Dom Quixote

De Miguel de Cervantes
Dom Quixote é um daqueles livros cujo nome transcende a obra em si, um clássicos tão clássico que é difícil conter uma expressão de descrença quando alguém diz que não o conhece nem remotamente, porque seu nome se consolidou como uma espécie de entidade popular, uma lenda onipresente no imaginário comum. Você já ouviu falar sobre, mesmo que vagamente. Todos nós ouvimos.
Foi engraçado pra mim constatar que eu era mais uma dessas pessoas que só conheciam Dom Quixote pelo título, praticamente. Soube de um pouco de seu enredo no primeiro ano do ensino médio através de uma professora de espanhol apaixonada pela língua e por quase tudo referente a ela, e da mãe de uma amiga que o leu na adolescência, e foi só aí que liguei toda a subjetividade do mito a algo palpável: um livro. Até então ele era só um conceito figurado na minha cabeça.
Mas ele adquiriu contornos concretos por definitivo quando vi aqueles dois trambolhos (volumes I e II) de mais de 600 páginas cada nas estantes da biblioteca, e fiz deles um desafio pessoal, que superei depois de quase um mês inteiro (eu já falei que são mais de 1300 páginas?) de leitura.
Nesse clássico da literatura, Cervantes nos apresenta a um camponês moderadamente bem apossado que, de tanto ler e mergulhar em romances de cavalaria andante e benfeitores galantes, acaba se convencendo, num surto de loucura que preocupantemente se prolonga, de que é, também, um desses cavaleiros de armadura. Então, respondendo ao seu suposto chamado e vocação natural, sai por aí com uma indumentária reciclada e totalmente fajuta encontrada atirada num depósito da casa, um burro decrépito que ele chama de corcel valente, Rocinante, e um escudeiro maltrapilho, Sancho Pança (com seu respectivo potrinho), que conseguiu ser quase tão louco quanto ele ao acreditar na promessa de uma ilha a governar como recompensa certa por seus futuros feitos e serviços prestados à comunidade.
Dom Quixote, sempre acompanhado de Sancho Pança + potrinho - e Rocinante, não vamos esquecer - sai pela Espanha convencido de que encontrará donzelas em apuros a serem salvas, saqueadores a serem combatidos, injustiças a serem remediadas, reis e rainhas a quem jurar fidelidade e toda a sorte de deveres que um bom e honrado cavaleiro andante está destinado a cumprir, segundo os rigorosos manuais (livros) nos quais ele passou tanto tempo imerso.
Mas não preciso dizer que ele não encontra nada desses desafios dignos de cerimônia em seu caminho, certo?
Dom Quixote talvez seja a mais popular - e mais bem-sucedida - paródia de todos os tempos, e é muito difícil ler os livros e rir com todo o humor de Cervantes ao ironizar romances de cavalaria sem nos sentirmos cativados pelo escritor em si, pela pessoa Cervantes, sem nos sentirmos "amigos íntimos" dele, mesmo com séculos de diferença, como disse um dos tradutores brasileiros numa introdução da edição que li.
Os livros elevam ao máximo o mecanismo de parodiar uma ideia clássica transformando-a numa piada homérica, ao passo que nossos personagens centrais passam por situações tão absurdas e grotescas que você não tem outra opção além de rir de toda aquela bizarrice enquanto fica com dó de Dom Quixote por estar levando tudo a sério.
O protagonista é uma piada ambulante: segue determinado a ser o mais honrado cavaleiro que já existiu, com toda a pompa a que tem direito, chamando um burro de corcel valente, prostitutas de damas, estalagens de palácios, material reciclado de armadura, um camponês bobo e perdido de escudeiro e toda uma lista infindável de convicções descabidas, sem atentar àqueles (TODOS com quem ele cruza) que riem e ironizam sua insanidade e não o levam nada a sério.
Só que além de bater palmas pro Cervantes por parodiar com louvor todo um gênero literário, o livro me conquistou porque encaro ele como uma paródia da VIDA. Quer dizer, simpatizo com Dom Quixote e fico com vontade de abraçá-lo porque todos nós somos piadas de mau gosto a nosso próprio modo, tentando seguir firmes e fazer do jeito certo enquanto enfrentamos a descrença alheia e passamos por situações absurdas que rendem resultados risíveis.
Eu, pessoalmente, me considero uma versão parodiada de uma pessoa de sucesso que manja da atividade v.i.v.e.r, e dom Quixote é isso: é um não sirvo pra isso, tô fazendo errado, minha vida tá toda torta mas dane-se, sigo tentando mesmo assim.
É um "estou para a vida tal como Dom Quixote está para a cavalaria andante", sacam?
Ganhou meu coração.
Mas não sou só elogios: os livros foram publicados há mais de três séculos (!), e como era de se esperar, eles reproduzem algumas idéias retrógradas, embora esses trechos não sejam lá tão enfáticos ou brutais nesse sentido. Há alguns comentários racistas em certo ponto e também algumas visões bem deturpadas e problemáticas sobre as mulheres - tem um momento grl pwr com uma mina falando sobre friend zone, mas também tem uma mulher se a.jo.e.lhan.do (?!) pra im.plo.rar (?!?!&*%$#@+) a volta de um cara lixo que a traiu e tratou como capacho, e eles se reconciliam de fato no que era pra ser uma ocorrência feliz, então não é como se fosse uma narrativa das mais ótimas em todos os âmbitos.
A época da publicação dos livros era também muito religiosa e ortodoxa, então temos o cristianismo/catolicismo como sinônimo único de benignidade. Assim, não são raros os momentos em que surgem diálogos sugerindo essa polaridade falaciosa entre crente = bom; não-crente = mau.
E também são mais de MILETREZENTASPÁGINAS, né. Em algum momento a gente começa a cansar, especialmente porque o livro é permeado por verdadeiros monólogos que duram páginas e mais páginas e exigem muita atenção para que não percamos o fio da meada.
Apesar disso e por causa de muitas outras coisas, Dom Quixote é uma daquelas histórias épicas e bem-humoradas que todos deveriam ler em algum momento, despretensiosamente, só pela diversão. Eu amaria ter na minha estante numa edição bem caprichada e cara, como um daqueles livros pra levar pra vida e ler pros sobrinhos aos pouquinhos, porque nosso quarteto esfarrapado vive diversas aventuras, e dá pra conhecer uma de cada vez, leve o tempo que precisar. ;)

Um trecho (esse trecho <3!):
''ENFIM, ELE SE EMBRENHOU TANTO NA LEITURA QUE PASSAVA AS NOITES LENDO ATÉ CLAREAR E OS DIAS ATÉ ESCURECER; E ASSIM, POR DORMIR POUCO E LER MUITO, SECOU-LHE O CÉREBRO DE MANEIRA QUE VEIO A PERDER O JUÍZO. SUA IMAGINAÇÃO SE ENCHEU DE TUDO AQUILO QUE LIA NOS LIVROS, TANTO DE ENCANTAMENTOS COMO DE DUELOS, BATALHAS, DESAFIOS, FERIDAS, GALANTEIOS, AMORES, TEMPESTADES E DISPARATES IMPOSSÍVEIS; E SE ASSENTOU DE TAL MODO EM SUA MENTE QUE TODO AQUELE AMONTOADO DE INVENÇÕES FANTASIOSAS PARECIA VERDADEIRO: PARA ELE NÃO HAVIA OUTRA HISTÓRIA MAIS CERTA NO MUNDO.''

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