15/03/2018

Garota Exemplar

Da Gillian Flynn
Este é um daqueles livros que desestruturam a gente e abalam nosso equilíbrio psicológico - ou pelo menos foi assim comigo. Preciso iniciar a resenha fazendo essa admoestação (e não simples comentário) porque a verdade é que não sei aonde minha instabilidade emocional vai me permitir chegar escrevendo esse texto, tamanha foi minha comoção com essa leitura.
Esse é o momento que eu deveria deixar reservado para sugerir que você ~SINTA O DRAMA~.
Em Garota Exemplar temos como protagonista um jornalista desempregado que se muda para sua cidade de origem com a belíssima esposa Amy, também desempregada, com quem está casado há quase cinco anos, para cuidar da saúde de seus pais e fugir do custo de vida elevado de Nova York. Lá ele abre um pub com sua irmã gêmea, graças a um empréstimo de sua mulher (que tem pais riquíssimos como lucro de uma popularíssima série de livros infantojuvenis baseada implicitamente na filha), e passa a investir a maior parte de seu tempo e esforço no novo empreendimento, enquanto a esposa fica, basicamente, desocupada em casa.
Não gosto dessas capas adaptadas aos
filmes (deixem as capas originais dos
livros, por favor!), mas vida que segue.
Amy, nossa segunda protagonista, é belíssima, sarcástica, tem um humor ácido e um cérebro rápido e genial, é descontraída, risonha, simpática e muito compreensiva dentro de seu relacionamento, tendo se apaixonado pelo formoso Nick logo de cara. 
A mulher perfeita, tudo que um cara poderia desejar, a arquetípica Garota Legal que povoa os sonhos masculinos.
Mas quando ela some sem deixar rastros no quinto aniversário de casamento do casal, deixando para trás uma sala de estar em estado caótico que evidentemente sugere confronto, uma porta escandalosamente escancarada e vestígios de um boa e substancial quantidade de seu sangue derramado no chão, toda a suposta e superficial beleza de seu casamento começa a se diluir. 
Uma série perturbadora de indícios e evidências alarmantes começam a apontar Nick como o principal suspeito... E é então, conforme a investigação vai se aprofundando, que as estruturas daquele casamento que aos olhos de todos parecia ideal começam a ruir desenfreada e desesperadoramente, descortinando uma série de desilusões antes ocultas sobre a vida do casal - tudo isso tendo como testemunhas a cidade, a mídia e o conhecimento público em escala nacional (além de nós, os leitores), nesse que passa a ser um caso policial inteiramente envolto em mistérios.
Preciso dizer, também, que Garota Exemplar é um livro difícil de abordar sem revelar spoilers, porque o cerne da narrativa subversiva idealizada pela autora (God bless her) só é plenamente assimilado por nós em função do grande plot twist que ocorre no enredo, lá pela metade do livro.
Mas tentando não cair em excessos, vou me permitir dizer que há um livro dentro de um livro aqui, e somos expostos, num jogo confuso e magistralmente arquitetado, ao desenvolvimento de duas narrativas - uma revelada na primeira metade do volume e outra na segunda - que acabam se contrapondo de maneira gritante e sugestiva, e só descobrimos essa divergência depois de um bom tempo – do contrário, a coisa perderia a graça (mentira, não perderia não) e eu não ficaria com uma vontade excruciante (sim) de ligar pra um amigo, parar alguém na rua ou sacudir a primeira pessoa que aparecesse na minha frente só pra GRITAAAAAAAAAAAAAAAAAAAR o quão insano e genial é o que Gillian Fynn criou aqui (é sério, tá MUITO difícil não apelar aos spoilers pra me fazer compreender; eu só comecei a pensar em criar uma newsletter pra poder falar nela, separadamente, de alguns desses spoilers de livros que me dominam e que não quero revelar explicitamente no blog pra não estragar a surpresa de ninguém), quando descobri a grande reviravolta.
Reiterando, num panorama geral o livro é dividido em dois (embora ele oficialmente tenha três partes), com duas narrativas, dois arcos, quase antagônicos em um determinado aspecto; e em ambos esses arcos o eu lírico se diferencia capítulo a capítulo, intercalando os escritos do diário de Amy e a visão presente de Nick, ambos em primeira pessoa. 
A primeira parte verdadeiramente me perturbou, porque ela ilustra a decadência tenebrosa e amedrontadora de um casamento que foi se diluindo aos poucos numa degradação fria, cruel e sombria que me deixou assustada e com medo do que eu descobriria conforme avançasse na leitura.
Da imagem de um casal perdidamente apaixonado somos levados ao cenário de um marido possível (porque a dúvida impera) agressor que perturbou e desestruturou psicologicamente sua parceira por muito tempo, até que ela teve um destino sinistro e misterioso que deixou poucas certezas e uma infinidade de suspeitas - que recaem, naturalmente, sobre seu parceiro.
Já quando nos é revelado o segundo e ambivalente quadro do cenário, a ‘’outra face da moeda’’, (Carol screaming internally here), eu fiquei aturdida até ser dominada por um completo fascínio – e uma pontinha de medo, sim – pelo que a autora fez.
Ela subverte de maneira delirante o quadro de "vítima e algoz" e nos deixa perplexos na hora de avaliar a legitimidade de cada personagem e conduta, tudo isso enquanto traz à tona uma crítica abissal e multifacetada a respeito de construções sociais e normas restritivas e opressivas impostas a um determinado grupo.
Embora eu tenha ressalvas sobre como essa questão é levantada (ressalvas que eu exporia na hipotética newsletter, por exemplo), devo dizer que eu simpatizei bastante com ambos os protagonistas (com reticências, claro), na primeira parte do livro; mas eu gostei muito mais (MUITO mais) deles e do desenvolvimento de um em especial (quando você ler, provavelmente vai ficar claro de quem estou falando) na segunda parte, por mais perturbador e assombroso que ele se apresente.
Como dito no início, não tenho ideia do quanto esse texto faz sentido ou não pra quem o lê de fora da minha cabeça (?), mas o que preciso explicitar com a maior clareza possível é que esse livro é ótimo, plurifacetado e ambíguo, e que a crítica que ele levanta é gritantemente válida e necessária, e trabalhada e desenvolvida aqui de uma maneira complexa e primorosa.
Ele precisa ser lido e virou um favorito absoluto para mim.
Falei que a primeira parte do livro, nessa minha definição que o diferencia em dois, me deixou perturbada, e que a segunda me deixou fascinada. Mas o que não muda na minha percepção sobre ambas é o assombro que elas transmitem ao mostrar como podemos passar anos de convivência sem saber minimamente quem são as pessoas que estão ao nosso lado.

''É UM TANTO PERTURBADOR RECORDAR UMA LEMBRANÇA CALOROSA E SENTIR-SE PROFUNDAMENTE FRIO.''

2 comentários:

  1. Te recomendo o livro Objetos Cortantes, da mesma autora! E ah, o filme de Garota Exemplar também é muuuuito bom.

    Limonada (antigo Novembro Inconstante)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Fiquei completamente OBCECADA pela escrita e pelo talento da Gillian Flynn, então certamente vou ler todos os livros dela que aparecerem na minha frente, quando eu tiver a chance, porque já tô querendo MUITO.
      O filme também tá na mira. ;)

      Excluir