Já mencionei Mad Men por aqui, dizendo que embora eu tenha achado a fotografia e o visual dos anos 60 apaixonantes, a série não chegou a me cativar logo de cara, o que fez com que a tarefa (que não devia ser tarefa, e sim passatempo) de olhar boa parte das temporadas (e é particularmente em torno das duas primeiras que esse texto vai girar, embora contenha breves pinceladas de ocorrências - sem nenhum graaaaaaaande e significativo spoiler, prometo - posteriores a elas, ao longo de todas as sete que compõem o show), tenha se tornado um tanto arrastada e extenuante. Além e apesar da dificuldade que tive ao tentar me deixar envolver pela produção num momento inicial (posteriormente nossa relação evoluiu lindamente), também falei que tinha motivos para voltar a falar da série nesse blog em algum texto futuro - quando concluísse a maratona, porque não sei lidar com coisas inacabadas.
Pois bem, terminei Mad Men e aqui estou.
Mad Men esteve no ar de 2007 a 2015, e ganhou diversos prêmios durante o processo, inclusive dois Emmys e três Globos de Ouro na categoria de melhor série dramática - o que, se você gosta de acompanhar essas premiações e sabe, não é pouca coisa.
Com uma estética e atuações impecáveis (sério, a estética: AAAAAAAAAHHHHHHHHH <3), a série nos leva a conhecer o cotidiano de uma agência de publicidade nova iorquina, a Sterling Cooper, de grande notoriedade e que promove diversas marcas famosas. O protagonista é Donald Draper, pai, maridoamante de muitas e diretor de criação, com vários subordinados.
O enfoque da produção é expor os bastidores fétidos de uma indústria que zelava pelas aparências, acima de tudo, e que, como não cansamos de ver em cada episódio, não hesitava em desvair por caminhos de natureza duvidosa para alcançar os lucros almejados.
Com uma estética e atuações impecáveis (sério, a estética: AAAAAAAAAHHHHHHHHH <3), a série nos leva a conhecer o cotidiano de uma agência de publicidade nova iorquina, a Sterling Cooper, de grande notoriedade e que promove diversas marcas famosas. O protagonista é Donald Draper, pai, marido
O enfoque da produção é expor os bastidores fétidos de uma indústria que zelava pelas aparências, acima de tudo, e que, como não cansamos de ver em cada episódio, não hesitava em desvair por caminhos de natureza duvidosa para alcançar os lucros almejados.
Esses desvios morais, no entanto, não se limitam ao ambiente da agência - quando dois dos bambambãs querem transar com moças convocadas para um teste como atrizes de propaganda depois do expediente ou como Don e o escritório ficam o primeiro episódio inteiro tentando achar um slogan para uma marca de cigarro que deliberadamente camuflasse a nocividade desse produto e a encobrisse aos olhos do público para não prejudicar as vendas, por exemplo; muito pelo contrário, a quebra dos princípios morais mais básicos e necessários se estende à vida íntima dos personagens (na forma da infidelidade matrimonial sem qualquer escrúpulo, principalmente), longe das paredes da agência, desde o primeiro episódio: um piloto cujo plot (memorável, se você bem lembra; o plot twist do episódio inicial, na verdade, foi o que me fez querer assistir à série, quando eu soube do spoiler antecipadamente) é construído inteiramente com o propósito de passar a mensagem de que essas pessoas mandaram muitas convenções para os ares e estão andando além de vários limites morais há muito tempo.
A quebra de diversos preceitos - e o costume enraizado de quebrá-los -, portanto, aparece na série como um mal generalizado de origem vaga, e fica difícil decidirmos se as vaidades do mercado em que atuam contaminou os profissionais ou se foi o contrário. Mas pela escolha específica do ambiente publicitário para que a série se desenvolva, acho que o público geral é inclinado a apostar na primeira hipótese.
De qualquer forma, a série mostra que esses homens loucos (a tradução exata de mad men) fazem jus à expressão que inventaram para designá-los.
Mas não é só pra resenhar Mad Men que estou aqui, mas principalmente pra dizer como a série me atingiu e me fez chorar copiosamente em silêncio (porque minha irmã tava deitada no beliche de baixo e eu não queria ter que tentar explicar a ela por que eu estava chorando no meio de um seriado sobre o mercado publicitário dos anos 60) no meio da madrugada. Mas claro que para tanto é bom contextualizar a situação, familiarizando minimamente quem está lendo isso aqui ao ambiente e à narrativa da série.
Acontece que Mad Men, ao contrário do que poderíamos supor pelo título, é muito sobre mulheres. Mulheres sobrevivendo a uma sociedade extremamente machista e misógina que as reprimia, agredia e abusava (verbal, psicológica ou fisicamente) todos os dias.
Mad Men tem mulheres de todos os tipo: ricas, pobres, poderosas, subservientes, solteiras, casadas, separadas, belíssimas, normais, subversivas, tristes... Mulheres como eu. Mas todas, invariavelmente, subestimadas, desdenhadas, menosprezadas e desrespeitadas, em algum momento ou em vários, por uma sociedade que as considerava inferiores aos homens.
Talvez seja fácil para alguns taxar Mad Men de uma série machista, porque em quase todos os episódios ela ilustra diversas vezes tal comportamento. Eu me senti enojada, desconfortável e incomodada tantas, mas tantas vezes enquanto assistia às temporadas que é impossível contar a quantidade de cenas que agrediram minha identidade feminina.
Mad Men tem mulheres de todos os tipo: ricas, pobres, poderosas, subservientes, solteiras, casadas, separadas, belíssimas, normais, subversivas, tristes... Mulheres como eu. Mas todas, invariavelmente, subestimadas, desdenhadas, menosprezadas e desrespeitadas, em algum momento ou em vários, por uma sociedade que as considerava inferiores aos homens.
Talvez seja fácil para alguns taxar Mad Men de uma série machista, porque em quase todos os episódios ela ilustra diversas vezes tal comportamento. Eu me senti enojada, desconfortável e incomodada tantas, mas tantas vezes enquanto assistia às temporadas que é impossível contar a quantidade de cenas que agrediram minha identidade feminina.
Me sentir triste e ultrajada sempre que eu via um grupo de funcionários homens da Sterling Cooper juntos dissecando com os olhos o corpo de uma mulher - colega deles - de cima a baixo e fazendo piadinhas sexistas que a reduziam a um pedaço de carne sem cérebro/personalidade era um padrão durante os quase 50 minutos de cada episódio.
Eu via essas cenas e me sentia completamente insultada e humilhada, me compadecendo com as personagens mulheres porque eram elas ali, numa ficção, mas poderia ser eu na vida real a qualquer momento; já foram mulheres reais em suas vidas reais em vários momentos, nos anos 60 ilustrados na série, nos dias de hoje... e infelizmente muitas serão no dia de amanhã também.
Só que reduzir a série a uma produção machista, embora seja um juízo compreensível (e impulsivo), é também um julgamento raso. Mad Men ganhou tantos prêmios e foi tão prestigiada muito em virtude da fidelidade com que ela retratou uma época. O fato dessa época ser palco de muita misoginia (e não são todas elas?) é uma realidade histórica, não culpa dos roteiristas.
Na verdade, a série aborda com maestria esse tema, valendo-se de um cenário tão desigual para fazer críticas concretas à maneira com que as mulheres eram - e são - encaradas em praticamente todos os meios. A série se apropria dessa narrativa e joga na nossa cara (às vezes sutilmente, às vezes escandalosamente, mas sempre de um jeito dorido, especialmente se você, o telespectador, for mulher) o tempo inteiro o quanto ser mulher se tornava algo degradante naquele contexto, porque elas aparentemente não eram (não podiam ser) mulheres por si mesmas, e sim mulheres segundo os homens - aos olhos deles e de acordo com a vontade e os ditames deles -, eternamente relegadas a segundo plano e a uma postura subserviente.
Eu sofri tanto junto com as mulheres de Mad Men...
Comecemos por Peggy: ela chega no primeiro episódio pra ser a nova secretária de Don, o personagem principal, e logo percebe que vai ter que se adaptar a esse mundo de homens pra não ficar pra trás. Ela dá em cima do chefe num momento calculado, e aos seus olhos necessário, porque todo o ambiente em que está a induz a pensar que se não for graças a um homem, se ela não for objetificada de alguma forma, não alcançará nenhum sucesso ali dentro. Posteriormente ela também é orientada por Joan, a ''chefe das secretárias'', a não se vestir como uma menininha, porque seria bom que os homens começassem a olhar pra ela se ela quisesse crescer dentro da empresa, uma vez que eles só dariam atenção ao seu potencial empresarial depois que tivessem sido fisgados por seus atrativos físicos; é essa a lógica.
Quando Peggy mostra que tem cacife pra estar ali no meio, desempenhando uma função que vai além do secretariado, e integra o time de criadores passando a dividir espaço com os homens... Eles marcam reuniões em bares masculinos e clubes de streap tease, ambientes em que uma mulher não era comumente bem-vinda, e convenientemente esquecem de mencionar a ela os dias em que a equipe vai fechar contrato com alguma marca, se reunir pra tomar algumas decisões a respeito do trabalho, apresentar uma proposta a algum cliente etc etc.
Mesmo depois de mostrar que tem talento, que tem profissionalismo e que é competente, ela continua sendo sucessiva e deliberadamente excluída do grupo por um bom tempo (um tempo ao qual ela só esteve sujeita em virtude de seu sexo), não por incompetência, mas porque não é um homem, não é ''como eles''.
E assim ela segue, tentando construir seu caminho em meio a convenções que tradicionalmente a inferiorizam.
Outra mulher notória na série é Joan, que já mencionei, a líder das secretárias (todas mulheres). Joan (que mulher), num contraponto com Peggy, é aquela que já sabe como o jogo funciona e quais regras e truques você precisa saber pra poder ganhar. Ela anda pelos corredores da Sterling Cooper com confiança e autoridade e tem o respeito de todos, incluindo os homens.
Eu via essas cenas e me sentia completamente insultada e humilhada, me compadecendo com as personagens mulheres porque eram elas ali, numa ficção, mas poderia ser eu na vida real a qualquer momento; já foram mulheres reais em suas vidas reais em vários momentos, nos anos 60 ilustrados na série, nos dias de hoje... e infelizmente muitas serão no dia de amanhã também.
Só que reduzir a série a uma produção machista, embora seja um juízo compreensível (e impulsivo), é também um julgamento raso. Mad Men ganhou tantos prêmios e foi tão prestigiada muito em virtude da fidelidade com que ela retratou uma época. O fato dessa época ser palco de muita misoginia (e não são todas elas?) é uma realidade histórica, não culpa dos roteiristas.
Na verdade, a série aborda com maestria esse tema, valendo-se de um cenário tão desigual para fazer críticas concretas à maneira com que as mulheres eram - e são - encaradas em praticamente todos os meios. A série se apropria dessa narrativa e joga na nossa cara (às vezes sutilmente, às vezes escandalosamente, mas sempre de um jeito dorido, especialmente se você, o telespectador, for mulher) o tempo inteiro o quanto ser mulher se tornava algo degradante naquele contexto, porque elas aparentemente não eram (não podiam ser) mulheres por si mesmas, e sim mulheres segundo os homens - aos olhos deles e de acordo com a vontade e os ditames deles -, eternamente relegadas a segundo plano e a uma postura subserviente.
Eu sofri tanto junto com as mulheres de Mad Men...
Comecemos por Peggy: ela chega no primeiro episódio pra ser a nova secretária de Don, o personagem principal, e logo percebe que vai ter que se adaptar a esse mundo de homens pra não ficar pra trás. Ela dá em cima do chefe num momento calculado, e aos seus olhos necessário, porque todo o ambiente em que está a induz a pensar que se não for graças a um homem, se ela não for objetificada de alguma forma, não alcançará nenhum sucesso ali dentro. Posteriormente ela também é orientada por Joan, a ''chefe das secretárias'', a não se vestir como uma menininha, porque seria bom que os homens começassem a olhar pra ela se ela quisesse crescer dentro da empresa, uma vez que eles só dariam atenção ao seu potencial empresarial depois que tivessem sido fisgados por seus atrativos físicos; é essa a lógica.
Quando Peggy mostra que tem cacife pra estar ali no meio, desempenhando uma função que vai além do secretariado, e integra o time de criadores passando a dividir espaço com os homens... Eles marcam reuniões em bares masculinos e clubes de streap tease, ambientes em que uma mulher não era comumente bem-vinda, e convenientemente esquecem de mencionar a ela os dias em que a equipe vai fechar contrato com alguma marca, se reunir pra tomar algumas decisões a respeito do trabalho, apresentar uma proposta a algum cliente etc etc.
Mesmo depois de mostrar que tem talento, que tem profissionalismo e que é competente, ela continua sendo sucessiva e deliberadamente excluída do grupo por um bom tempo (um tempo ao qual ela só esteve sujeita em virtude de seu sexo), não por incompetência, mas porque não é um homem, não é ''como eles''.
E assim ela segue, tentando construir seu caminho em meio a convenções que tradicionalmente a inferiorizam.
Outra mulher notória na série é Joan, que já mencionei, a líder das secretárias (todas mulheres). Joan (que mulher), num contraponto com Peggy, é aquela que já sabe como o jogo funciona e quais regras e truques você precisa saber pra poder ganhar. Ela anda pelos corredores da Sterling Cooper com confiança e autoridade e tem o respeito de todos, incluindo os homens.
Só que fica claro pra nós que o caminho que ela percorreu até ali não foi o mesmo que os funcionários do sexo dominante na agência: ela teve que crescer profissionalmente coexistindo com o tratamento misógino recebido por uma mulher num ambiente de trabalho comum à época, que era projetado por um filtro sexista que atribuía todas aquelas características clichês (sensualidade, persuasão, encanto feminino) ao que, então mais do que nunca, era o "segundo sexo". Só aprendendo a sobreviver a esses estereótipos ela conseguiu conquistar seu espaço, nunca esquecendo de conduzir sua carreira com perspicácia apesar deles.
É um pouco complicado tentar descrever como a atriz (que atriz!) construiu a personagem, porque Joan é sim linda e sensual (sério, aquela atriz tem um dom), mas nunca fica aquela coisa caricata que estamos acostumados a ver: uma mulher se jogando pra cima dos caras inescrupulosamente e com vulgaridade, como se esse fosse o propósito da existência dela. Joan sempre (ou quase) está no controle da situação, mantém a compostura e não se deixa diminuir pelos homens com quem tem que lidar diariamente.
Mas a série separa momentos para nos mostrar que ela às vezes se abate, sim, e não poderia ser diferente - ela também é uma mulher sobrevivendo num mundo de homens, afinal.
Joan aguenta o marido que, numa daquelas atitudes territoriais masculinas ridículas, força ela a fazer sexo com ele (é estupro que chama) num escritório da agência em que ela trabalha; ela se abate quando, depois de desempenhar uma função mais ''cabeça'' (ler e filtrar informações veiculadas na tv e rádio) em auxílio a um dos funcionários homens, é substituída na tarefa sem prévio aviso por outro cara, sem que ninguém perceba o quanto aquilo significou pra ela; fica sem reação quando um cartunista contrariadoe imbecilridículotomaraquemorra faz um desenho erótico e ridículo em que ela está com um dos chefes, se justificando dizendo que ela "anda pela agência como quem quer ser atacada" (=estuprada; já ouvimos essa história antes) e a lista de exemplos é enorme (e eu não vou nem falar já falando do cara que exigiu sexo com ela em troca de um contrato com a agência - coisa que tornou o arco da personagem bem mais complexo e que foi determinante para o seu desfecho, mas não vou desenvolver aqui pra não dar spoilers -, porque não conseguiria pensar naquele porco durante muito tempo sem vomitar no teclado e ficar com mais vontade de enfiar uma faca na pança dele, desculpa).
Um dos momentos mais tocantes pra mim, ainda nas duas primeiras temporadas, também protagonizado por Joan, é no episódio em que todo o escritório (e o país) acorda com uma notícia que vira assunto em todas as conversas do dia: Marilyn Monroe foi encontrada morta em seu quarto de hotel, no que teria sido um provável suicídio. (Sua morte gera controvérsias e levanta suspeitas até hoje, inclusive...)
É um pouco complicado tentar descrever como a atriz (que atriz!) construiu a personagem, porque Joan é sim linda e sensual (sério, aquela atriz tem um dom), mas nunca fica aquela coisa caricata que estamos acostumados a ver: uma mulher se jogando pra cima dos caras inescrupulosamente e com vulgaridade, como se esse fosse o propósito da existência dela. Joan sempre (ou quase) está no controle da situação, mantém a compostura e não se deixa diminuir pelos homens com quem tem que lidar diariamente.
Mas a série separa momentos para nos mostrar que ela às vezes se abate, sim, e não poderia ser diferente - ela também é uma mulher sobrevivendo num mundo de homens, afinal.
Joan aguenta o marido que, numa daquelas atitudes territoriais masculinas ridículas, força ela a fazer sexo com ele (é estupro que chama) num escritório da agência em que ela trabalha; ela se abate quando, depois de desempenhar uma função mais ''cabeça'' (ler e filtrar informações veiculadas na tv e rádio) em auxílio a um dos funcionários homens, é substituída na tarefa sem prévio aviso por outro cara, sem que ninguém perceba o quanto aquilo significou pra ela; fica sem reação quando um cartunista contrariado
Um dos momentos mais tocantes pra mim, ainda nas duas primeiras temporadas, também protagonizado por Joan, é no episódio em que todo o escritório (e o país) acorda com uma notícia que vira assunto em todas as conversas do dia: Marilyn Monroe foi encontrada morta em seu quarto de hotel, no que teria sido um provável suicídio. (Sua morte gera controvérsias e levanta suspeitas até hoje, inclusive...)
[Uma coisa legal de Mad Men é que a série seguidamente busca trazer esses acontecimentos históricos ao dia dos personagens em tela, como a morte de personalidades famosas e ''públicas'', a tensão provocada pela perspectiva de desgraça iminente durante a guerra fria e campanhas presidenciais, por exemplo.]
Sobre a morte da atriz, alguns homens, depois de uma seriedade inicial, fazem piadas maliciosas; as mulheres ficam abatidas, em silêncio, e baixam a cabeça... Joan chora. Escondida de todos, ela se fecha na sala do ex-amante, um dos chefões da agência, se deita no sofá e chora. Quando ele chega e vê que ela está sofrendo pela morte da moça, solta, irônico, uma frase do tipo ''Você também?! Não acredito...'', ao que ela responde ''Não é uma piada. Esse mundo a destruiu''.
Elas choram porque Marilyn foi uma mulher como elas, num mundo hostil... Uma mulher que não conseguiu sobreviver a esse mundo, e isso as lembra de como essa batalha diária é difícil e dura.
Mas de todas as mulheres na trama, aquela pela qual mais me compadeci nas primeiras temporadas e com a qual mais sofri foi Betty, esposa do Don.
Betty é tão, tão, tããão triste, melancólica, solitária e sofrida que todos esses sentimentos saltam na cara do telespectador a cada cena em que ela aparece, dominando o ambiente e nos arrastando àquele mar de desilusões e tristezas de maneira espontânea e rápida, sem que percebamos (sobretudo graças ao talento da atriz, claro).
A tristeza derivada da insatisfação é o sentimento dominante no arco inicial da personagem, e essa é uma emoção tão perene e incrustada no que passou a ser a Pessoa Betty que a gente percebe que não é algo efêmero e superficial; existe um contexto e uma estrutura muito bem cimentados sustentando todos os fatores que a mantêm nesse ânimo; essa estrutura é o patriarcado.
Não lembro bem onde vi esse artigo, não sei se topei com ele na internet ou se ouvi sobre na própria série, nem posso assegurar o nível de sua credibilidade, mas o que constava nele é que houve uma onda de depressão na vida dessas mulheres ''do lar'': a elas era prometido o conforto de uma casa e a livre disposição de recursos para cuidar dos filhos enquanto o marido garantia o sustento na rua; mas quando essa realidade as atingia, tudo parecia opaco e triste. Elas acabavam insatisfeitas com o rumo da própria vida e com a sensação contínua de improdutividade e ócio que toda uma estrutura pregava ser um ideal.
Mas de todas as mulheres na trama, aquela pela qual mais me compadeci nas primeiras temporadas e com a qual mais sofri foi Betty, esposa do Don.
Betty é tão, tão, tããão triste, melancólica, solitária e sofrida que todos esses sentimentos saltam na cara do telespectador a cada cena em que ela aparece, dominando o ambiente e nos arrastando àquele mar de desilusões e tristezas de maneira espontânea e rápida, sem que percebamos (sobretudo graças ao talento da atriz, claro).
A tristeza derivada da insatisfação é o sentimento dominante no arco inicial da personagem, e essa é uma emoção tão perene e incrustada no que passou a ser a Pessoa Betty que a gente percebe que não é algo efêmero e superficial; existe um contexto e uma estrutura muito bem cimentados sustentando todos os fatores que a mantêm nesse ânimo; essa estrutura é o patriarcado.
Não lembro bem onde vi esse artigo, não sei se topei com ele na internet ou se ouvi sobre na própria série, nem posso assegurar o nível de sua credibilidade, mas o que constava nele é que houve uma onda de depressão na vida dessas mulheres ''do lar'': a elas era prometido o conforto de uma casa e a livre disposição de recursos para cuidar dos filhos enquanto o marido garantia o sustento na rua; mas quando essa realidade as atingia, tudo parecia opaco e triste. Elas acabavam insatisfeitas com o rumo da própria vida e com a sensação contínua de improdutividade e ócio que toda uma estrutura pregava ser um ideal.
Betty é a representação perfeita desse surto depressivo generalizado.
Ela é a "esposa perfeita", o epítome feminino do sonho americano: fica em casa, cuida das crianças, faz comida pro marido (que é um PÉSSIMO marido e um PÉSSIMO pai, a propósito; sério, Don, vai se ferrar), deixa as coisas em ordem e é uma anfitriã primorosa na hora de receber os colegas de trabalho do Don, sempre com umfalso sorriso bem-comportado e toda a falsa cortesia de uma jovem e deslumbrante esposa falsamente feliz. Uma vez ou outra ela vai a clubes de equitação, e esse é seu único escape daquela tediosa (e corrosiva, nesse contexto) vida de dona de casa.
Ela fica feliz na segunda temporada, quando consegue trabalhar como modelo (seu emprego antes do casamento), e um novo brilho surge na face da personagem durante alguns episódios... até que a relação empresarial de Don com um dos empregadores da esposa passa por percalços e ela sai prejudicada, demitida. E aí vemos toda a tristeza voltar aos seus olhos de novo.
Ela descobre que Don a traiu com váááárias mulheres, como parecia ser seu costume (e de todos os personagens masculinos de Mad Men, por sinal: eles traem suas parceiras com qualquer uma que aparecer disposta, indiscriminadamente e sem hesitar; é-lhes uma atitude tão natural e cabível quanto respirar, são adúlteros crônicos) e esse é só mais um entre tantos outros golpes na sua lista de sofreres.
E o curioso é que Betty é triste como ninguém, mas ela não sabe o nome do mal que a aflige, não conhece seu rosto, não detecta sua origem, não sabe o que ele é. O que causa a tristeza de Betty é algo que passou a ser tão intrínseco, atemporal e atrelado a sua existência que lhe parece perfeitamente natural e ela nem nota mais.
Ela é a "esposa perfeita", o epítome feminino do sonho americano: fica em casa, cuida das crianças, faz comida pro marido (que é um PÉSSIMO marido e um PÉSSIMO pai, a propósito; sério, Don, vai se ferrar), deixa as coisas em ordem e é uma anfitriã primorosa na hora de receber os colegas de trabalho do Don, sempre com um
Essa não é uma imagem de Betty Draper - mas poderia ser. |
Ela descobre que Don a traiu com váááárias mulheres, como parecia ser seu costume (e de todos os personagens masculinos de Mad Men, por sinal: eles traem suas parceiras com qualquer uma que aparecer disposta, indiscriminadamente e sem hesitar; é-lhes uma atitude tão natural e cabível quanto respirar, são adúlteros crônicos) e esse é só mais um entre tantos outros golpes na sua lista de sofreres.
E o curioso é que Betty é triste como ninguém, mas ela não sabe o nome do mal que a aflige, não conhece seu rosto, não detecta sua origem, não sabe o que ele é. O que causa a tristeza de Betty é algo que passou a ser tão intrínseco, atemporal e atrelado a sua existência que lhe parece perfeitamente natural e ela nem nota mais.
Esse mal, repito, é a sociedade patriarcal em que ela está inserida e a opressão que essa estrutura inflige à sua vida continuamente.
Ela virou uma pessoa catatônica que não sabe mais o que pensar, o que fazer, o que sentir. Fica continuamente imersa numa rotina engessante e numa condição emocional entorpecida que é síntese do quanto ela está completamente perdida. Ela tem momentos perturbadores de apatia em que fica sentada numa poltrona encarando o nada sem qualquer expressão no rosto e sem manifestar nenhum tipo de reação e ver aquilo doía. E eu realmente não sei se essas cenas fizeram sentido para os homens que assistiram à série. Eles entenderam o que ela sentia? Eles conseguiram ver?
Quanto aos homens, eu não sei. Mas se você for mulher, meu palpite é que vai entender e ver tudo, sim - assim como eu.
Betty, por ser mulher daquele tempo, é triste, triste, triste. E eu, mulher no meu tempo, mais semelhante ao dela do que eu gostaria e do que discursos progressistas pregam por aí, ficava triste, triste, triste com ela.
Essa depressão, os insultos e comentários maliciosos dos homens (que ecoavam toda uma sociedade), a desigualdade, a violação e negação de direitos básicos, a hostilidade ao que fugia da regra quanto ao que era convencional às mulheres (Helen, uma mãe solteira de dois filhos que largou o marido adúltero pra cuidar das crianças sozinha, trabalhando e dando duro, sofre horrores na série e é considerada vítima de uma verdadeira praga por não ter um homem, pobrezinha!), os olhares masculinos que sondavam o corpo das mulheres de cima a baixo e, especialmente quando em grupo, culminavam numa postura intimidadora e opressiva sobre elas, tudo isso é exposto nos episódios de Mad Men de maneira fracionada e gradativa, numa cena aqui outra ali, de modo que absorvemos esse cenário de forma autônoma e natural, aos poucos.
Ela virou uma pessoa catatônica que não sabe mais o que pensar, o que fazer, o que sentir. Fica continuamente imersa numa rotina engessante e numa condição emocional entorpecida que é síntese do quanto ela está completamente perdida. Ela tem momentos perturbadores de apatia em que fica sentada numa poltrona encarando o nada sem qualquer expressão no rosto e sem manifestar nenhum tipo de reação e ver aquilo doía. E eu realmente não sei se essas cenas fizeram sentido para os homens que assistiram à série. Eles entenderam o que ela sentia? Eles conseguiram ver?
Quanto aos homens, eu não sei. Mas se você for mulher, meu palpite é que vai entender e ver tudo, sim - assim como eu.
Betty, por ser mulher daquele tempo, é triste, triste, triste. E eu, mulher no meu tempo, mais semelhante ao dela do que eu gostaria e do que discursos progressistas pregam por aí, ficava triste, triste, triste com ela.
Essa depressão, os insultos e comentários maliciosos dos homens (que ecoavam toda uma sociedade), a desigualdade, a violação e negação de direitos básicos, a hostilidade ao que fugia da regra quanto ao que era convencional às mulheres (Helen, uma mãe solteira de dois filhos que largou o marido adúltero pra cuidar das crianças sozinha, trabalhando e dando duro, sofre horrores na série e é considerada vítima de uma verdadeira praga por não ter um homem, pobrezinha!), os olhares masculinos que sondavam o corpo das mulheres de cima a baixo e, especialmente quando em grupo, culminavam numa postura intimidadora e opressiva sobre elas, tudo isso é exposto nos episódios de Mad Men de maneira fracionada e gradativa, numa cena aqui outra ali, de modo que absorvemos esse cenário de forma autônoma e natural, aos poucos.
Não é difícil perceber que a estratégia da produção é nos causar incômodo; fica muito claro o esforço empreendido para que essas cenas cutuquem o espectador - nas feridas, se ele for ela. Em grande parte dos momentos em que as personagens femininas aparecem, Mad Men grita e joga na nossa cara o quanto era difícil a vida de quem não tinha um pênis. A série quer que saibamos que, pqp, ser mulher era uma batalha diária e dura.
Essa realidade é abordada em praticamente todos os episódios, a cada cena uma facada diferente - por mais superficial que ela pareça em tela, a princípio (sou sensível, então todas chegaram a mim como Jack e sua serra estripadora, mais ou menos).
Mas Mad Men não é só isso, naturalmente. A série não fala só sobre como a sociedade era (é?) injusta com as mulheres; ela levanta outras questões também (há uma cena bastante sensível da empregada dos Draper, mulher (claro) negra (claro), trocando a estação de rádio quando a chefe chega na cozinha, tirando da reportagem comentada sobre mulheres que foram atacadas por sua cor, não lembro bem em que episódio; vale citar, embora eu ainda não perdoe a série pela falta ao não discutir o racismo de maneira mais enfática, porque num contexto que permitiu até que se abordasse a morte de Martin Luther King - num dos meus episódios favoritos, diga-se de passagem -, ela peca ao não desenvolver mais esses personagens e essas narrativas, só mal e porcamente, porque ganchos e oportunidades não faltaram), retrata outras situações em tela, mostra conflitos que não giram em torno dos sintomas do machismo, tem outros personagens que não as mulheres - e elas próprias têm outra espécie de tormentos -, com problemas diferentes etc etc. Embora empregue um bom tempo em tela tratando dessas questões sexistas, o foco de Mad Men não é esse, não é só esse - e não há problema algum nisso.
A série também não aborda, geralmente, essa questão de maneira radical e chocante, visceralmente intensa e brutal, como é com The Handmaisd's Tale, por exemplo. As coisas são desenvolvidas de maneira mais sutil e paulatina, em porções, como eu disse um pouco acima. Um machismo revoltante jorra na nossa cara quando as cenas retratam isso, sim, mas esse fluxo narrativo não fica ''ligado'' o tempo inteiro em nossa direção, afinal de contas, esse não é o único propósito da produção.
Quando a sociedade em que estão inseridas constantemente machuca as mulheres de Mad Men e vemos isso, sofremos com elas, sim, e muito; mas se você viu a série, sabe que não é aquela coisa pungente, de uma tristeza voraz, que nos atinge de forma contundente e arrasadora - como a Rose soprando o apito desesperada e em prantos pra chamar um barco de resgate depois que o Jack morre em Titanic; ou como quando o Will Smith mata a cachorrinha infectada, sua última e única companhia amiga, em Eu Sou A Lenda (eu sempre MOOOOORRRRRROOOO nessa maldita cena); ou mesmo como quando os pais do garotinho alemão encontram as roupas do filho na beira da cerca que circunda o campo de concentração em O Menino do Pijama Listrado, e sabem que ele entrou na câmera de gás com o amigo judeu... A coisa não é tão violenta e acentuada em Mad Men, não tem bem um grande pico de emoção, uma mensagem implícita de ''aahh, telespectador, é agora que a gente vai fazer você chorar'' dos roteiristas.
Não. Em MM as coisas são mais sutis, mais melancólicas. O ritmo não é frenético; os acontecimentos se arrastam. Não é uma série que faz as pessoas chorarem e provavelmente você não vai ouvir nenhum(a) fã recomendando o seriado a um(a) amiguinho(a) com uma frase do tipo ''mas se prepara: você vai sofrer horrores e vai chorar muito com esses episódios, não diga que eu não te avisei...''
Essa realidade é abordada em praticamente todos os episódios, a cada cena uma facada diferente - por mais superficial que ela pareça em tela, a princípio (sou sensível, então todas chegaram a mim como Jack e sua serra estripadora, mais ou menos).
Mas Mad Men não é só isso, naturalmente. A série não fala só sobre como a sociedade era (é?) injusta com as mulheres; ela levanta outras questões também (há uma cena bastante sensível da empregada dos Draper, mulher (claro) negra (claro), trocando a estação de rádio quando a chefe chega na cozinha, tirando da reportagem comentada sobre mulheres que foram atacadas por sua cor, não lembro bem em que episódio; vale citar, embora eu ainda não perdoe a série pela falta ao não discutir o racismo de maneira mais enfática, porque num contexto que permitiu até que se abordasse a morte de Martin Luther King - num dos meus episódios favoritos, diga-se de passagem -, ela peca ao não desenvolver mais esses personagens e essas narrativas, só mal e porcamente, porque ganchos e oportunidades não faltaram), retrata outras situações em tela, mostra conflitos que não giram em torno dos sintomas do machismo, tem outros personagens que não as mulheres - e elas próprias têm outra espécie de tormentos -, com problemas diferentes etc etc. Embora empregue um bom tempo em tela tratando dessas questões sexistas, o foco de Mad Men não é esse, não é só esse - e não há problema algum nisso.
Eu precisava incluir esse GIF em algum momento, mesmo que fora de contexto. |
Quando a sociedade em que estão inseridas constantemente machuca as mulheres de Mad Men e vemos isso, sofremos com elas, sim, e muito; mas se você viu a série, sabe que não é aquela coisa pungente, de uma tristeza voraz, que nos atinge de forma contundente e arrasadora - como a Rose soprando o apito desesperada e em prantos pra chamar um barco de resgate depois que o Jack morre em Titanic; ou como quando o Will Smith mata a cachorrinha infectada, sua última e única companhia amiga, em Eu Sou A Lenda (eu sempre MOOOOORRRRRROOOO nessa maldita cena); ou mesmo como quando os pais do garotinho alemão encontram as roupas do filho na beira da cerca que circunda o campo de concentração em O Menino do Pijama Listrado, e sabem que ele entrou na câmera de gás com o amigo judeu... A coisa não é tão violenta e acentuada em Mad Men, não tem bem um grande pico de emoção, uma mensagem implícita de ''aahh, telespectador, é agora que a gente vai fazer você chorar'' dos roteiristas.
Não. Em MM as coisas são mais sutis, mais melancólicas. O ritmo não é frenético; os acontecimentos se arrastam. Não é uma série que faz as pessoas chorarem e provavelmente você não vai ouvir nenhum(a) fã recomendando o seriado a um(a) amiguinho(a) com uma frase do tipo ''mas se prepara: você vai sofrer horrores e vai chorar muito com esses episódios, não diga que eu não te avisei...''
Mad Men não é ''uma série de fazer chorar''. Quer dizer, alguém mais além de mim ficou aos prantos por causa dela? Acho improvável...
Então por que eu chorei?
Eu vinha de uma semana horrível, em que fui machucada diversas vezes por ser menina. Minha identidade feminina foi atingida não uma ou duas vezes, e sim várias, durante os dias que precederam os episódios em que deixei (não que elas tenham pedido permissão, foram jorrando das pálpebras sem mais nem menos mesmo) rolar minhas lágrimas. Por acontecimentos distintos, que por infelicidade ocorreram num período de tempo bem curto, eu fui lembrada de como é difícil, duro, extenuante e complicado ser mulher na sociedade em que estamos.
Eu vinha de uma semana horrível, em que fui machucada diversas vezes por ser menina. Minha identidade feminina foi atingida não uma ou duas vezes, e sim várias, durante os dias que precederam os episódios em que deixei (não que elas tenham pedido permissão, foram jorrando das pálpebras sem mais nem menos mesmo) rolar minhas lágrimas. Por acontecimentos distintos, que por infelicidade ocorreram num período de tempo bem curto, eu fui lembrada de como é difícil, duro, extenuante e complicado ser mulher na sociedade em que estamos.
Aconteceu na rua, aconteceu em casa, aconteceu com uma discussão horrível com meu pai (machista pra caramba) e com um comentário triste da minha mãe, que conseguiu me abater em questão de segundos. Aconteceu quando liguei a TV e vi mais dois casos de feminicídio (olha que incrível, o corretor nem reconhece essa palavra). Aconteceu quando fui nos comentários de um artigo sobre um episódio nojento e horrível, puro reflexo do machismo, que ocorreu num ônibus, e li vários homens repetindo (na cabeça deles super bem intencionados, não duvido) o velho discurso de ela podia ter se cuidado mais, a roupa era muito sugestiva, tava pedindo. Aconteceu quando topei com outra matéria sobre estupro, de uma criança que sofreu abusos por anos nas mãos do pai, protegido pela mãe que rejeitou a menina, tal como o resto da família, e li uma criatura que não consigo chamar de ser humano fazendo uma piada (piada?! por favor...) maliciosa que dizia que a criança (CRI-AN-ÇA) devia ficar agradecida ao homem que a ''orientou sexualmente'' (em termos bem mais vulgares que não quero repetir aqui, claro).
Então eu chorei. Não por causa do comentário e do olhar que recebi na rua, não por causa da discussão horrível com meu pai ou pelo que ouvi (não um comentário ofensivo, mas triste mesmo) da minha mãe. Não chorei pela mulher no ônibus ou pelas que morreram assassinadas pelos maridos que coitados, se sentiam vítimas injustiçadas, porque se elas não fossem ficar com eles não ficariam com mais ninguém. Não pela menina, criança, abusada durante uma vida, que vai ficar com traumas e medos até sabe-se lá quando, ou pelas mulheres sofrendo em Mad Men. Não chorei por isso ou aquilo, por uma ou por outra; eu chorei por tudo, por tudo junto, por todas juntas. Por toda essa coisa deprimente e horrível que tem sido sobreviver nesse mundo, como mulher.
Quando eu deitei na minha cama querendo fugir um pouco da vida com um episódio de Mad Men, logo após passar por uma das situações que mencionei acima, eu queria uma folga, um tempo, uma pausa, um momento de intervalo de todos esses pesos que nós (mulheres) carregamos pra cima e pra baixo, em casa, na rua ou lendo uma matéria na internet, a partir do momento em que levantamos da cama. Eu precisava dessa pausa, mas não a tive, muito pelo contrário - e foi por isso que eu chorei. Porque ver aquilo, mais aquilo, mais as mulheres de Mad Men sofrendo, como se não bastasse a gente no mundo real!, doeu muito, me exauriu e me abalou demais, e foi o que faltava para que eu desistisse de tentar segurar as lágrimas e deixasse elas rolarem livremente. Eu não aguentei mais.
Quando deixei o episódio de Mad Men rodando e esperei o sono vir, minha mente estava pesada, cansada, quase em colapso por ter passado por todas essas (aparentemente) pequenas coisas em uma só semana. Eu estava nas últimas. Ver a Joan recebendo olhares de cima a baixo de homens que encarnavam o estereótipo predador, ver a Peggy ser intimidada pelos colegas no trabalho, ver outra personagem aguentando comentários machistas e maliciosos na tela, ver a Betty sentada num divã e se encarando no espelho sem entender por que ela era tão triste e por que a vida dela estava uma merda, ver o Don e vários outros personagens masculinos na série sendo uns cretinos horríveis e abusivos com suas parceiras foi a facada final, o fim da picada, o empurrãozinho necessários pra que meu castelo inteiro desmoronasse, a gota d'água que faltava para que o copo (a jarra, a banheira, o oceano) das minhas tristezas transbordasse.
Por mais isolado que cada acontecimento parecesse, minha mente associou um ao outro, porque eles eram indiscutivelmente sustentados por uma mesma estrutura, o patriarcado. O desgraçado que abusou da filha, o imbecil que fez o comentário doente a respeito disso, o nojento que ''assediou'' (o que ele fez vai além dessa palavra) uma mulher no ônibus, os comentários que ouvi em casa e na rua, tudo isso é herança da mesma sociedade que tenta medir o valor de Joan e Peggy pelo tamanho dos seios delas - uma sociedade que se revolta, vejam só, se a manutenção desse padrão misógino é ameaçada. E foi por isso que foi tão fácil, natural e até certo para mim chorar por tudo junto; porque esses vários probleminhas na verdade são um só - que podem se apresentar de maneiras diferentes, meio camuflados e escondidos aqui e ali, mas sendo indiscutivelmente a mesma coisa.
Ler uma reportagem na internet; ver uma matéria na TV; passar por um carro na rua tocando um funk extremamente misógino que diminui as mulheres; ter uma discussão com meu pai; encarar olhares e ouvir comentários maliciosos na rua; ser francamente intimidada porque sou mulher e eles são homens e intimidar mulheres é direito deles; ouvir que passar a roupa que vai usar não é obrigação do homem, e sim da mulher; ver Betty, Joan e Peggy sofrendo em Mad Men... Cada um desses episódios pode parecer tão pequeno se analisado individualmente, tão inofensivo e irrelevante, besteira, coisa da minha cabeça... Mas acontece que não passamos por um ou por outro, aqui e ali, lá de vez em quando, de maneira moderada. Passamos por todos, toda semana, quase todo dia, a vida toda, e é a soma deles que tem força pra derrubar e deixar alguém (#eu) chorando copiosamente no meio da madrugada com o episódio de uma série aparentemente inofensiva.
Deixar nós, mulheres, chorando no meio da madrugada. Os homens nem devem saber o que é chorar por algo assim...
Enquanto assistia a Game of Thrones, eu percebi uma coisa, depois de vários episódios em que isso passou sem ser notado por mim: sempre que uma mulher aparecia em cena, especialmente se ela fosse uma daquelas camponesas pobres e desconhecidas, no meio do mato ou trabalhando com o pai dentro de um pub perdido frequentado por cavaleiros a serviço do rei ou homens comuns, sempre que uma delas aparecia, meu corpo inteiro ficava instantaneamente tenso e retesado, sem que eu pudesse controlar ou premeditar isso segundos antes.
Então eu chorei. Não por causa do comentário e do olhar que recebi na rua, não por causa da discussão horrível com meu pai ou pelo que ouvi (não um comentário ofensivo, mas triste mesmo) da minha mãe. Não chorei pela mulher no ônibus ou pelas que morreram assassinadas pelos maridos que coitados, se sentiam vítimas injustiçadas, porque se elas não fossem ficar com eles não ficariam com mais ninguém. Não pela menina, criança, abusada durante uma vida, que vai ficar com traumas e medos até sabe-se lá quando, ou pelas mulheres sofrendo em Mad Men. Não chorei por isso ou aquilo, por uma ou por outra; eu chorei por tudo, por tudo junto, por todas juntas. Por toda essa coisa deprimente e horrível que tem sido sobreviver nesse mundo, como mulher.
Quando eu deitei na minha cama querendo fugir um pouco da vida com um episódio de Mad Men, logo após passar por uma das situações que mencionei acima, eu queria uma folga, um tempo, uma pausa, um momento de intervalo de todos esses pesos que nós (mulheres) carregamos pra cima e pra baixo, em casa, na rua ou lendo uma matéria na internet, a partir do momento em que levantamos da cama. Eu precisava dessa pausa, mas não a tive, muito pelo contrário - e foi por isso que eu chorei. Porque ver aquilo, mais aquilo, mais as mulheres de Mad Men sofrendo, como se não bastasse a gente no mundo real!, doeu muito, me exauriu e me abalou demais, e foi o que faltava para que eu desistisse de tentar segurar as lágrimas e deixasse elas rolarem livremente. Eu não aguentei mais.
Quando deixei o episódio de Mad Men rodando e esperei o sono vir, minha mente estava pesada, cansada, quase em colapso por ter passado por todas essas (aparentemente) pequenas coisas em uma só semana. Eu estava nas últimas. Ver a Joan recebendo olhares de cima a baixo de homens que encarnavam o estereótipo predador, ver a Peggy ser intimidada pelos colegas no trabalho, ver outra personagem aguentando comentários machistas e maliciosos na tela, ver a Betty sentada num divã e se encarando no espelho sem entender por que ela era tão triste e por que a vida dela estava uma merda, ver o Don e vários outros personagens masculinos na série sendo uns cretinos horríveis e abusivos com suas parceiras foi a facada final, o fim da picada, o empurrãozinho necessários pra que meu castelo inteiro desmoronasse, a gota d'água que faltava para que o copo (a jarra, a banheira, o oceano) das minhas tristezas transbordasse.
Por mais isolado que cada acontecimento parecesse, minha mente associou um ao outro, porque eles eram indiscutivelmente sustentados por uma mesma estrutura, o patriarcado. O desgraçado que abusou da filha, o imbecil que fez o comentário doente a respeito disso, o nojento que ''assediou'' (o que ele fez vai além dessa palavra) uma mulher no ônibus, os comentários que ouvi em casa e na rua, tudo isso é herança da mesma sociedade que tenta medir o valor de Joan e Peggy pelo tamanho dos seios delas - uma sociedade que se revolta, vejam só, se a manutenção desse padrão misógino é ameaçada. E foi por isso que foi tão fácil, natural e até certo para mim chorar por tudo junto; porque esses vários probleminhas na verdade são um só - que podem se apresentar de maneiras diferentes, meio camuflados e escondidos aqui e ali, mas sendo indiscutivelmente a mesma coisa.
Ler uma reportagem na internet; ver uma matéria na TV; passar por um carro na rua tocando um funk extremamente misógino que diminui as mulheres; ter uma discussão com meu pai; encarar olhares e ouvir comentários maliciosos na rua; ser francamente intimidada porque sou mulher e eles são homens e intimidar mulheres é direito deles; ouvir que passar a roupa que vai usar não é obrigação do homem, e sim da mulher; ver Betty, Joan e Peggy sofrendo em Mad Men... Cada um desses episódios pode parecer tão pequeno se analisado individualmente, tão inofensivo e irrelevante, besteira, coisa da minha cabeça... Mas acontece que não passamos por um ou por outro, aqui e ali, lá de vez em quando, de maneira moderada. Passamos por todos, toda semana, quase todo dia, a vida toda, e é a soma deles que tem força pra derrubar e deixar alguém (#eu) chorando copiosamente no meio da madrugada com o episódio de uma série aparentemente inofensiva.
Deixar nós, mulheres, chorando no meio da madrugada. Os homens nem devem saber o que é chorar por algo assim...
Enquanto assistia a Game of Thrones, eu percebi uma coisa, depois de vários episódios em que isso passou sem ser notado por mim: sempre que uma mulher aparecia em cena, especialmente se ela fosse uma daquelas camponesas pobres e desconhecidas, no meio do mato ou trabalhando com o pai dentro de um pub perdido frequentado por cavaleiros a serviço do rei ou homens comuns, sempre que uma delas aparecia, meu corpo inteiro ficava instantaneamente tenso e retesado, sem que eu pudesse controlar ou premeditar isso segundos antes.
Percebi que todos os meus músculos se contraíam, minha postura, geralmente sentada na cama, mudava, porque minhas pernas, meu tronco e meus ombros ficavam duros em milésimos de segundo e eu me endireitava. Notei que meu coração acelerava um pouquinho num ritmo compassado e pesado, e meu corpo inteiro, não só a mente, ficava atento, concentrado e tenso cuidando essa mulher e observando os homens que a cercavam em cena, normalmente abusando dela, forçando ela a sentar no colo deles e trazer cerveja pra que eles pudessem se embriagar enquanto se divertiam rasgando as roupas dela, ao que claramente se seguiria um estupro - muitas vezes coletivo.
Eu estava olhando a série numa boa e três minutos depois, sem perceber, me via subitamente perturbada no meio de uma dessas cenas, pensando e torcendo sem parar pra que tudo passasse logo, passa logo, passa logo, passa logo, alguém chegue e mate eles, por favor, passa logo, passa logo.
Normalmente passava mesmo logo, mas os caras raramente morriam e as mulheres continuavam vítimas, nem conhecíamos a história delas - eram só usadas como plot device pra chocar o telespectador num recurso de roteiro irresponsável. Não é segredo pra ninguém que os produtores da série não estão preocupados com a maneira de representar as personalidades femininas, afinal...
Mas aquelas cenas de abuso em GoT, em que as mulheres sofriam nas mãos dos homens, tal como as cenas em que as mulheres de Mad Men sofriam por causa dos homens (de maneira mais sutil, mas ainda degradante), não só me chocavam ou tocavam; elas me incomodavam, me machucavam.
São coisas diferentes.
Não sei se os homens sabem o que é isso. Acho que eles desconhecem essa diferença, entre se chocar e genuinamente se machucar vendo algo assim. Não sei se a experiência de ficar com o corpo tenso, os músculos contraídos, suando e torcendo pelo fim quando uma pessoa do sexo deles aparece em tela em meio a diversas outras do sexo oposto lhes é familiar, natural. Não sei se eles conseguem dimensionar a dor, a perturbação, o incômodo terrível e cruel de ver/saber de uma mulher desconhecida sofrendo assédio no ônibus, de uma menina sendo abusada pelo pai em casa, de outras que são mortas pelos parceiros (e praticamente nunca o contrário) e se sentir tão frustrada e de mãos atadas por não poder garantir, com sua própria força, que esses merdas nunca mais vão fazer isso de novo, com nenhuma outra mulher... Ou que terão o pinto arrancado numa amputação determinada pela justiça, pelo menos, sei lá.
Normalmente passava mesmo logo, mas os caras raramente morriam e as mulheres continuavam vítimas, nem conhecíamos a história delas - eram só usadas como plot device pra chocar o telespectador num recurso de roteiro irresponsável. Não é segredo pra ninguém que os produtores da série não estão preocupados com a maneira de representar as personalidades femininas, afinal...
Mas aquelas cenas de abuso em GoT, em que as mulheres sofriam nas mãos dos homens, tal como as cenas em que as mulheres de Mad Men sofriam por causa dos homens (de maneira mais sutil, mas ainda degradante), não só me chocavam ou tocavam; elas me incomodavam, me machucavam.
São coisas diferentes.
Não sei se os homens sabem o que é isso. Acho que eles desconhecem essa diferença, entre se chocar e genuinamente se machucar vendo algo assim. Não sei se a experiência de ficar com o corpo tenso, os músculos contraídos, suando e torcendo pelo fim quando uma pessoa do sexo deles aparece em tela em meio a diversas outras do sexo oposto lhes é familiar, natural. Não sei se eles conseguem dimensionar a dor, a perturbação, o incômodo terrível e cruel de ver/saber de uma mulher desconhecida sofrendo assédio no ônibus, de uma menina sendo abusada pelo pai em casa, de outras que são mortas pelos parceiros (e praticamente nunca o contrário) e se sentir tão frustrada e de mãos atadas por não poder garantir, com sua própria força, que esses merdas nunca mais vão fazer isso de novo, com nenhuma outra mulher... Ou que terão o pinto arrancado numa amputação determinada pela justiça, pelo menos, sei lá.
Será que os homens entenderiam o que é chorar simplesmente vendo
uma personagem aguentando uma cantada machista numa série, porque você veio de uma semana terrível em que foi lembrada de como o machismo é presente, e ver uma personagem qualquer passando por algo que, por menor que seja, ilustra isso é a gota d'água pra você? Será que meu
namorado entenderia, verdadeiramente entenderia - não como se entende matemática ou regrinhas gramaticais, mas com aquela compreensão que acontece entre iguais, passíveis de sentir o mesmo - essa minha reação que pareceria tão excessivamente dramática e
sem motivo pra ele, se eu lhe contasse?
Infelizmente, eu duvido.
Tenho dificuldade em acreditar que algum homem, na sua vida de homem, recebendo tratamento de homem numa sociedade de homens, entenderia o que é chorar pela Betty, pela Joan e pela Peggy, por qualquer outra, conhecida ou desconhecida, real ou fictícia, como quem sente as feridas delas na própria pele e como eu chorei e choro, porque elas são tão diferentes entre si e tão diferentes de mim... mas tão, tão iguais também.
Tenho dificuldade em acreditar que algum homem, na sua vida de homem, recebendo tratamento de homem numa sociedade de homens, entenderia o que é chorar pela Betty, pela Joan e pela Peggy, por qualquer outra, conhecida ou desconhecida, real ou fictícia, como quem sente as feridas delas na própria pele e como eu chorei e choro, porque elas são tão diferentes entre si e tão diferentes de mim... mas tão, tão iguais também.
Porque Joan é ruiva e eu sou loira, Peggy é personagem de uma série e eu vivo na realidade, Betty gostava de trabalhar como modelo e eu detestaria a exposição de algo assim, quero ser médica... Somos tão diferentes, eu e elas, com algumas características quase antagônicas, somos opostas em vários aspectos... Mas somos iguais. Tão, tão iguais. Porque somos mulheres, passamos por coisas essencialmente tão parecidas, problemas de uma mesma origem, medos e feridas tão semelhantes, e as mazelas constroem iguais. Nos fazem iguais.
Não acho que os homens fossem entender o meu choro - esse choro específico. Acho que ninguém além de nós, mulheres, entenderia. Acho que é algo que só a gente pode entender e pelo que só a gente consegue verdadeiramente chorar.
Só nós.
Chorei pelas mulheres de Mad Men. Não acho que eu vá sobreviver a The Handmaid's Tale.
Eu amo essa história por sua narrativa, eu gosto muito desta serie por causa da mensagem que tem. Mad men a produção soube trazer o assunto. Jon Hamm e me ator favorito. Ele sempre surpreende com os seus papeis, pois se mete de cabeça nas suas atuações e contagia profundamente a todos com as suas emoções. Adoro porque sua atuação não é forçada em absoluto. Seguramente o êxito de sua filmes de filmes de Jon Hamm deve-se a suas expressões faciais, movimentos, a maneira como chora, ri, ama, tudo parece puramente genuíno. Sempre achei o seu trabalho excepcional, sempre demonstrou por que é considerado um grande ator. Gosto muito do ator e a sua atuação é majestosa.
ResponderExcluirEu enalteci pouco as atuações masculinas nesse texto, né? Estava focada em outras questões, mas concordo que elas estão impecáveis, com destaque ao John Hamm, claro.
ExcluirA série não virou uma favorita DE VIDA para mim, mas lembro do trabalho dos atores com MUITA administração e fascínio. Aquele elenco não brinca em serviço, e sorte a nossa por isso.