13/05/2018

Lendo a Tetralogia Napolitana

Esse texto foi escrito mais como uma conversa de leitor pra leitor, de fã pra fã, da tetralogia Napolitana, do que como uma resenha crítica. Assim, eu acabo revelando algumas informações sobre o desenvolvimento da série ao passo que vou abordando o contexto dos diferentes volumes, especialmente na primeira parte do texto, quando falo de cada livro individualmente, não revelando alguns spoilers com todas as letras, mas deixando muitas coisas subentendidas. Na segunda parte do texto abordo alguns acontecimentos-chave de maneira mais explícita, embora tente mascarar ao máximo toda a narrativa.
Não é um texto ideal para quem nunca leu a tetralogia e quer chegar nela sem qualquer revelação prévia, mas eu também gostaria de obrigar todo mundo a ler na esperança de que ele os convença sem ressalvas a dar uma chance a essa série maravilhosa.
Temos uma incongruência lógica aqui, um impasse. ¯\_(ツ)_/¯
Dito isso, fique por sua conta e risco. Mas se aventurando ou não no texto, fique com esse meu apelo como garantia, para meu desencargo de consciência: LEIA A TETRALOGIA NAPOLITANA, PELOAMORDEDEUS.

Algumas leituras a gente realiza, simplesmente. Lê uma palavra atrás da outra, assimila frases, folheia páginas, chega aos pontos finais e reticências. Outras leituras a gente vive, a gente experiencia, a gente acompanha até se envolver além de qualquer limiar objetivo, até não sabermos mais o que são os nossos sentimentos e o que são as projeções do escritor, quais são as nossas emoções e quais são as emoções das personagens.
Em algumas leituras a gente se emaranha, como um fio branco que é misturado a um novelo colorido até não conseguir mais se desvencilhar. A gente se perde entre as páginas e não sabe mais como voltar ao que éramos no ponto de partida, no eixo inicial. Nos misturamos com os sentimentos do autor, com os pensamentos dos personagens, com as emoções de ambos até que com eles você seja um só, criaturas fundidas sem qualquer fronteira nítida delimitada entre um e outro.
Lendo a tetralogia Napolitana eu me senti assim. Eu me envolvi até me perder de mim mesma, até viver ao máximo tudo que Elena Ferrante exigiu e tomou de mim quando escreveu esses livros pensando que eles chegariam às mãos de leitores como eu.
Essas leituras são as melhores, incomparáveis, sempre vão ser. Mas também são as mais doridas.
Logo nas primeiras páginas do livro um, mergulhamos na narrativa de Elena Greco (Lenu), mulher que recebe uma ligação informando que sua amiga de infância e de vida, Raffaella Cerullo (Lila), sumiu sem deixar rastros. De imediato ela sabe que não é nenhuma ocorrência desastrosa, que Lila quis assim, que ela planejou sumir para além do alcance de qualquer um como há mais de trinta anos vinha dizendo que faria - e como finalmente conseguiu, como era com tudo a que estava determinada.

''Faz pelo menos trinta anos que ela me diz que quer sumir sem deixar rastro, e só eu sei o que isso quer dizer. Nunca teve em mente uma fuga, uma mudança de identidade, o sonho de refazer a vida noutro lugar. E jamais pensou em suicídio, incomodada com a ideia de que Rino tivesse de lidar com seu corpo, cuidar dele. Seu objetivo sempre foi outro: queria volatizar-se, queria dissipar-se em cada célula, e que ninguém encontrasse o menor vestígio seu. E, como a conheço bem - ou pelo menos acho que conheço -, tenho certeza de que encontrou o meio de não deixar sequer um fio de cabelo nesse mundo, em lugar nenhum.''

Movida pela vontade de frustrar os planos de desaparecimento completo da amiga que sempre parecia estar à sua frente, e também pela necessidade pessoal de contar a própria história, que se mescla de maneira indistinta com o relacionamento que desenvolveu com a outra, para destrinchar a própria narrativa e tentar entendê-la um pouco mais, Elena começa a escrever sobre tudo o que viveu com Lila, desde a infância até os dias atuais, perpetuando através daquelas palavras a imagem da desaparecida e desnudando diante do leitor suas fragilidades, vergonhas, derrotas e experiências, como se contando e revivendo tudo pudesse arranjar também uma resposta para o sumiço daquela que foi não sua alma gêmea, mas sua cara-metade. Aquela que foi, não por opção, mas por uma designação que parecia vinda de uma força poderosa do universo que as transcendia, sua antagonista e aliada, sua antítese e sua semelhante, sua eterna referência e contraponto. Sua obsessão.
Depois desse prefácio atual em que ficamos sabendo do desaparecimento intencional de Lila (de sua fuga, portanto), voltamos ao passado para que Lenu nos conte sua história com a amiga desde o início, e conhecemos uma Nápoles relativamente antiga, de meados dos anos 50, que é charmosa a seu próprio modo e tem seus encantos, mas que também é extremamente problemática, especialmente no bairro de nossas duas protagonistas - bairro que praticamente adquire o status e a relevância de um personagem central na história.
O lugar onde cresceram é permeado por diferenças ideológicas, rixas declaradas, milícias, desigualdade social e uma marginalidade de elite, representada especialmente pela figura dos dois irmãos Solara, filhos de uma família rica do bairro que domina o comércio e os empreendimentos independentes com um poder hegemônico.

''Não tenho saudade de nossa infância cheia de violência. Acontecia-nos de tudo, dentro e fora de casa, todos os dias, mas não me lembro de jamais ter pensado que a vida que nos coubera fosse particularmente ruim. A vida era assim e ponto final, crescíamos com a obrigação de torná-la difícil aos outros antes que os outros a tornassem difícil para nós.''

Além desse clima contínuo de tensão, as famílias das duas são muito pobres, quase miseráveis, e se sustentam com muito custo e dificuldade.
Desde os primeiros anos de suas vidas, já no primeiro livro, elas são expostas sucessivamente a várias consequências das convenções machistas às quais a comunidade conservadora, rígida e retrógrada em que estão inseridas está condicionada por tradição. Elas crescem debaixo de um juízo social implícito que determina que homens podem bater em suas esposas para educá-las, tal qual seus pais faziam com elas antes do casamento, por exemplo, e outras ideias tão equivocadas e horríveis quanto. Não preciso nem dizer que esse senso comum problemático se estende aos quatro livros da série, que abarcam da infância à velhice das duas amigas.
O ponto é que Elena e Lila não cresceram e viveram de maneira fácil nem tiveram muitos privilégios. Suas vidas, apesar de terem seguido caminhos bem opostos, foram difíceis e sofridas - embora existam picos e declínios aqui e ali.
Eu vivi todos esses sofrimentos e crises durante a leitura, como se fossem comigo. Doeu em cada página.
No primeiro livro, A Amiga Genial, Ferrante se preocupa em nos mostrar a dinâmica do relacionamento das duas, para que assimilemos bem a essência de uma das bases dos conflitos que permeiam toda a série. O volume acompanha a infância e pré-adolescência das meninas.
Elena, nossa narradora e a mente na qual imergimos da primeira à última página, sempre foi a menina esforçada e intelectual do rolê, que galgava um caminho tortuoso mas determinado para se consolidar como a merecida número um, a queridinha dos professores, nota A absoluta. Ela é inteligente e acima de tudo esforçada, uma pessoa que se destaca.
Mas Lila, a grande razão de sua narrativa, aparece com uma genialidade natural, inata e superior a tudo e todos, diluindo as certezas que Lenu nutria a respeito de si mesma, minando sua confiança irremediavelmente e a condenando, na esfera intelectual, eternamente a segundo plano, ao segundo lugar no pódio, a ser aquela que é muito, mas não é tudo - especialmente a partir de seu próprio ponto de vista.
A partir desse momento, Lila se estabelece como uma espécie de musa inalcançável para Lenu, o modelo de algo que ela nunca conseguirá ser, por mais que se esforce e não importando a intensidade de seu almejar. Elena se esforça pra ser o que Lila é sem nenhum esforço; uma quer se tornar o que a outra já nasceu sendo.
Naturalmente, nossa narradora sente o peso desse contraste e se ressente, mas a atração que uma exerce sobre a outra (especialmente Lila sobre Lenu, que está até escrevendo sobre a relação das duas) consolida uma amizade profunda que faz com que uma queira sim o bem para a outra, apesar de todos os sentimentos conflituosos que perpassam seu relacionamento.
A alma da relação das duas é difícil de assimilar plenamente, porque é uma amizade que faz as vezes de rivalidade, e isso mergulha a mente de Lenu (a mente a que temos acesso) num conflito constante e intransponível, num embate silencioso e nocivo que a contamina durante todo o percurso de suas vidas.
Eu sei o que é ser a número dois. Não em todos os âmbitos da minha vida, porque eu procurava preencher essa lacuna onde sabia que poderia compensar - e consegui -, mas essa vantagem rasa não consolava a Carolina da adolescência que se recriminava por não ser a número um nas relações sociais, com os garotos, e que não era a mais bonita nem a mais cativante, longe disso.
Sei o que é ser a número dois, sei muito bem. Tenho minha Lila. Então foi muito fácil mergulhar na história de Lenu e Lina como se ela fosse minha. E doeu.
No segundo livro, que acompanha a adolescência e juventude das duas e é intitulado História do Novo Sobrenome, uma de nossas amigas está casada (e com um novo sobrenome) e não demora muito para que seu relacionamento conjugal enverede por um caminho em que reinam a misoginia e as instituições patriarcais. Logo ela começa a apanhar quando contraria de qualquer forma o macho alfa da casa, num reflexo nítido de todas aquelas ideias machistas com as quais as duas amigas sempre coexistiram em suas casas, e que ditam que o homem tem livre direito de educar (que repúdio por isso, meu Deus) a esposa a seu bel prazer quando lhe for conveniente.

''Tínhamos visto nossos pais baterem em nossas mães desde a infância. Tínhamos crescido pensando que um estranho não podia sequer nos tocar, mas que o pai, o noivo e o marido podiam nos encher de tapas quando quisessem, por amor, para nos educar, para nos reeducar.''

Nos quatro livros nossas protagonistas enfrentam tormentos que têm como gênese, precedendo todos os outros fatores, suas identidades femininas e o fato de serem mulheres, e Ferrante expõe isso muito bem e sem dó do leitor, mas é nesse segundo volume que os problemas enfrentados pelas mulheres como fruto dos papéis de gênero problemáticos determinados pela sociedade confrontam nossas personagens com força pela primeira vez e de maneira mais chocante - embora essa sistemática seja retratada em cada um dos quatro livros. Elas são mulheres; não poderia ser diferente.
Aqui os interesses românticos e afetivos de Lenu começam a se desenvolver com mais ênfase, consequência natural do início da puberdade, e ela vê que Lila também pode superá-la no âmbito das relações heteroafetivas, além do campo intelectual - embora os dois andem entrelaçados porque a genialidade fascinante de Lila exerce um papel importante na maneira com que ela atrai os homens insuperavelmente.
Por conta disso, Lenu sofre um outro grande golpe que acaba determinando muito a maneira com que ela se enxerga, afetando sua confiança mais uma vez.
Lembrei de como minha Lila conseguiu fazer o mesmo comigo (também de forma inconsciente) e me perdi mais uma vez entre aquelas páginas, misturando minha história às narrativas de Lila e Lenu. Doeu.
No terceiro livro as duas já estão adultas e têm problemas de ordem maior, visto que nessa idade os resultados de suas ações são naturalmente mais agravantes e fatais, em virtude dessa faixa etária que dá os primeiros passos em direção ao fim. O livro se chama História de Quem Foge e de Quem Fica, e há o destaque para a jornada perpendicularmente oposta (em sentido de direção física e destinos na vida, principalmente, porque no plano emocional e de estado de espírito elas oscilam na merda com equanimidade) que elas traçam, quando uma se afasta de Nápoles por definitivo (nos dois livros anteriores ela já vinha transitando entre localizações distintas, mas aqui as determinações são mais decisivas) e elas passam a construir vidas bem díspares em vários aspectos e também pela determinação natural que se dá através das diferenças entre os locais em que decidem viver.
Vou desenvolver mais esse tópico a seguir, mas as impressões que o segundo livro já vinha consolidando são reforçadas ao destacar a disparidade entre os destinos das duas, consequência natural de seus atos, decisões e oportunidade do passado.
Elas traçam caminhos bem diferentes, sobretudo em decorrência do mundo ruim em que vivem, da desigualdade, da miséria e de privilégios que são estendidos a uns e não a outros. Esse livro é o que retrata com mais ênfase (e também mais crueza e brutalidade) a desigualdade social, porque nossas duas personagens, por um bom tempo, vivem vidas tão, tão dissimiles unicamente em razão das oportunidades que uma poderia ter recebido mas não recebeu e de privilégios que chegam, de maneiras improváveis e sorteadas, somente à outra.
Lila está numa fábrica terrível que a vê como escrava e que não estimula em nada sua notável inteligência e Lenu está estabelecendo sua carreira literária como principal e suficiente forma de sustento.
História de Quem Foge e de Quem Fica também é a história do que a crueldade do mundo pode fazer com duas mulheres em hierarquias sociais distintas.

''Trabalhavam [mulheres na mesma fábrica que Lila] duramente, isso era certo. E pelo menos Enzo tinha com certeza sob os olhos, na fábrica, algumas operárias esgotadas pelo cansaço, pelas humilhações e obrigações domésticas, tanto quanto Lila. No entanto, agora, ambos se horrorizavam com a condição em que que ela trabalhava, não o podiam tolerar. É preciso esconder tudo deles, dos homens. Preferiam não saber, preferiam fazer de conta que o que acontecia em seus ambientes por algum milagre não ocorreria com as mulheres ligadas a eles.''

Esse, como se pode supor, também é o livro mais político da série, em que ideologias são pregadas e desmentidas em todos os cantos da Itália. O que se verifica é um cenário de violência e morte, em que militantes são assassinados, terroristas milicianos se levantam, crimes políticos são cometidos e há vilipêndios de todos os tipos - tudo isso como resultado do antagonismo definido entre os ideais fascistas e comunistas.
História de Quem Foge e de Quem Fica é, para mim, o mais denso da série, porque o panorama se expande para além do eixo Lila e Lenu (sem tirá-las da perspectiva central, no entanto) e nos é revelado o quadro social complexo que assola toda a Itália.
Além disso, aqui as duas já estão encarando a experiência da maternidade, e isso tem um baita peso no desenvolvimento de suas narrativas.
Naturalmente, ler esse livro também doeu. Demais.
O quarto e último livro, História da Menina Perdida, é tacitamente dividido em duas partes, e as protagonistas já estão se encaminhando à posteridade. Numa das partes, observamos de maneira mais detida (sem a gritante distração da ordem política que é detalhadamente abordada no terceiro) a condição de vida das duas amigas e os estágios a que elas chegaram em suas respectivas carreiras e relacionamentos inter e intrapessoais - essa última distinção é bem importante aqui, porque como sabemos, há um grande e constante embate que ocorre nas mentes dessas duas mulheres, eternas amigas e rivais.
Lenu está em um relacionamento bem problemático (com o espécime masculino mais odiado da série pela maioria dos fãs - e pela própria Lina, que o reprova enfaticamente) que ora a deixa em êxtase (ela está apaixonada), ora mina cada um de seus pensamentos e decisões. Sua carreira literária já está bem consolidada e seu nome e status como escritora são reconhecidos internacionalmente. Os problemas na vida pessoal e longe das miras de colunistas que escrevem sobre seus livros, no entanto, são bem preocupantes e perturbam-na diariamente.

''Logo descobri que estava me habituando a ser simultaneamente feliz e infeliz, como se esse fosse o novo e inevitável estatuto de minha vida.''

Já Lila não é mais uma operária explorada numa fábrica de tratamentos desumanos, como víamos no livro três, e sim a própria empreendedora numa empresa de computação que ela criou em cidadania com o parceiro de agora.
Ambas adquirem notoriedade e respeito em suas áreas de atuação e a genialidade de Lila volta a se destacar, especialmente no bairro das duas, tendo em vista sua capacidade natural de ser bem-sucedida mesmo quando os recursos são escassos.
A vida amorosa de Lenu também sofre um novo golpe, O Maior Golpe, e Lila, mesmo que contra a sua vontade, acaba se demonstrando, mais uma vez, superior à amiga nesse sentido, e ainda sua antagonista natural, dadas as circunstâncias.
Mas esse também é o livro com o episódio mais triste de suas histórias, como a autora nos adverte já nas primeiras páginas.

''Nesta manhã, tento controlar o cansaço e volto à escrivaninha. Agora, que estou perto do ponto mais doloroso de nossa história, quero buscar na página o equilíbrio entre mim e ela que, na vida, não consegui encontrar sequer comigo mesma.''

Os desdobramentos do evento mais lamentável de toda a tetralogia Napolitana, naturalmente, moldam muito as senhoras, velhinhas, que Lenu e Lila vão se tornar. O Tal acontecimento, por traçar reflexos marcantes nas pessoas que elas vão ser, também acaba determinando muito o rumo do relacionamento delas e como se sustentará - ou não - sua amizade.
Ver isso, ver de camarote (porque é isso que Ferrante nos impele a fazer), duas pessoas envelhecendo junto com seu relacionamento não é fácil, não é leve, não é nada banal. Dói.

''Mas nunca telefonei para ela, nem ela ligou para mim. Convenci-me de que o longo fio de voz que tinha sido nosso único contato por anos não nos favorecera. Tínhamos mantido o laço entre nossas duas histórias, mas por subtração. Tínhamos nos tornados entidades abstratas uma para a outra, tanto que agora eu podia inventá-la para mim a meu modo, seja como uma especialista em computadores, seja como uma guerrilheira urbana decidida e implacável, ao passo que ela, com toda probabilidade, podia me ver tanto como o estereótipo da intelectual de sucesso quanto como uma senhora culta e abastada, toda dedicada aos filhos, aos livros e a conversas eruditas com o marido acadêmico. Ambas precisávamos de uma nova concretude, de um corpo, e no entanto nos distanciáramos e não conseguíamos mais nos conceder isso.''

Vou tentar parar por aqui com descrições que enfocam cada volume em si, e falar mais de toda a minha experiência - e não apenas leitura - com a tetralogia Napolitana.
Normalmente eu nomeio as resenhas aqui no blog unicamente com o título do livro ou série resenhados, mas achei interessante acrescentar esse ''lendo'' antes, nesse caso, lendo a tetralogia Napolitana, porque toda essa leitura foi uma vivência que ultrapassa o ato de virar uma página atrás da outra e se projeta na minha vida, nos meus sentimentos e pensamentos para além do que livros quaisquer conseguiriam. É algo que não finda ao virar da última página, mas permanece nos pensamentos até sabe-se lá quantas leituras futuras. Não é um ''li'' puro e simples; é ''lendo'', é ato contínuo.
Uma das melhores coisas da tetralogia Napolitana é o quanto ela permite (posso ousar um coage aqui, na verdade) que nos envolvamos por inteiro naquelas narrativas. É impossível (foi para mim, pelo menos) ler aquelas quase duas mil páginas, acompanhar as vitórias e sofreres de Lenu e Lila permanecendo impassivos diante de tudo. Ferrante não nos permite a indiferença e faz com que mergulhemos até o pescoço nas vidas e nuances das protagonistas, e esse envolvimento completo no qual nos sintonizamos é um diferencial enorme na hora de elencar essa série entre as melhores experiências literárias que eu já tive.
Eu já disse inúmeras vezes que, para mim, de nada vale a melhor escrita do mundo, a mais culta e rebuscada, aquela que consegue exprimir conceitos complexos, transmitir ensinamentos atemporais etc, se ela não me envolver e não me fizer sentir (desculpa, Jane Austen) de fato o que estou lendo, e isso é algo que Ferrante conseguiu com êxito em todos os quatro livros. A forma com que ela desenvolve o enredo e as gradações de suas personagens, a forma com que ela nos prende num relato viciante da primeira à última linha, é de uma capacidade imersiva impressionante, e eu aplaudo a escritora até cansar por isso.
É difícil ler tudo aquilo e não se transformar, aqui e ali, em Lenu e Lila, e não sentir o que elas vivem na nossa própria pele. Isso é fantástico. Só escritores excepcionais conseguem.
A tetralogia Napolitana é a coisa mais verdadeiramente viciante que eu leio em meses. Foram 1704 páginas lidas em vinte e poucos dias (com mais dois outros livros aleatórios entre os quatro da série) num ritmo frenético e com uma vontade alucinada e obsessiva que beirava a loucura, porque OLHA. Eu vivi uma representação bem precisa da famigerada expressão ''comer os livros'', sabe? Engolia-os e mergulhava de cabeça sempre que via uma brecha na minha rotina atarefada de Pessoa Adulta Vejam Só Quem Diria, lendo 100, 130, 150 páginas durante o expediente no trabalho.
Bebia as páginas da tetralogia com a sede irrefreável de alguém que passou dias vagando pelo deserto e se depara com um galão de água à disposição.
Foi uma verdadeira doença - uma doença que eu recomendo.
Elena Ferrante mantém sua identidade sob sigilo. Ninguém conhece seu rosto, seu nome de verdade, o lugar onde ela mora ou como trata seus animais de estimação (torço muito para que ela também seja uma tia dos gatos, sabe?). Só se sabe que ela é italiana (nascida em 1943, segundo a wikipédia) e que tem um talento absurdo para a escrita - um dom. (E, ah, graças a Deus ela também tem uma coluna semanal no The Guardian, amém, Senhor.)
Naturalmente, muito já se especulou sobre ela. Quem é a mente misteriosa por trás das histórias de Elena (sua xará!) Greco e Raffaella Cerullo?, muitos se perguntam, e eu estou entre eles. Só que não me preocupo muito em conhecer sua identidade, porque concordo com uma frase que ela mesma difunde: tudo que lhe interessa dizer, seus livros já falam por ela. Eles falam demais.
Mas uma hipótese que se levantou é a de que ela seja um homem. E é muito engraçado (meio num nível rindo de nervoso) sondar essa ideia depois de ter lido qualquer coisa dela... Deixa eu intensificar mais esse contraste: é quase absurdo supor que Elena Ferrante, a pessoa que escreveu aquelas páginas, a escritora que criou aquelas duas mulheres, Lenu e Lila, que adquirem vida própria e saltam pra fora dos livros povoando nossas mentes mesmo fora da ficção, não é cabível partir do pressuposto de que ela não seja mulher. As coisas simplesmente não batem.
A tetralogia Napolitana trás um olhar muito particular e íntimo sobre a experiência de ser mulher nesse mundo. É difícil, dificílimo conceber que alguém que não enxergue e viva o mundo através de uma condição que permita esse olhar, que alguém que não seja, também, uma mulher como Lila e Lena, portanto, conseguiria traduzir as coisas com a pureza de sentidos e detalhes e com a verossimilhança que Ferrante consegue aqui. É tudo muito profundo, muito íntimo, muito bem desenvolvido e esmiuçado. É tudo muito real, muito condizente com o Ser Mulher.
Pra escrever aquilo tudo, ou você é mulher ou é um/a profundo/a conhecedor/a da alma feminina. Meu palpite é que Ferrante encorpora as duas alternativas.

''Enquanto os homens se entregam a aventuras espaciais, a vida para as mulheres deste planeta ainda deve começar. A mulher é a outra face da terra. A mulher é o Sujeito Imprevisto.''

É tão fácil nos enxergarmos em Lila e Lenu porque, num paradoxo louco, em sua ficção, elas são reais demais. As duas personagens são tão bem desenvolvidas que eu me pegava diversas vezes pensando até que ponto a própria Ferrante, mulher de verdade, não viveu aquilo tudo, não foi aquilo tudo. A protagonista da história se chama Elena e é escritora, tal como ela, a autora, e isso me impelia a pensar demais que aquilo deveria ter um fundinho biográfico porque nossa, como pode uma pessoa conhecer tão bem a alma de alguém a ponto de retratá-la numa folha escrita com essa profundidade e escrutínio sem que esse alguém seja real?
Claro que sendo a boa escritora que ela é (ponto passivo aqui), toda a tetralogia se torna viável. Mas a maestria da obra e os nomes e carreiras em comum me faziam ponderar.

''Para escrever é preciso desejar que algo sobreviva a você.''

Os livros dela, mesmo se ampliarmos nossa avaliação para além da individualidade das personagens Elena e Lila, são muito reais em todos os aspectos. 
Não existem príncipes encantados nem homens maravilhosos que vão chegar salvando a protagonista de todos os seus tormentos. Na tetralogia Napolitana, as duas aprendem que só elas podem fazer alguma coisa por si próprias. As quase duas mil páginas são Lenu e Lila se ferrando, quebrando a cara, chorando, sofrendo, apanhando, penando e lutando do início ao fim, sozinhas. Só elas, sem nenhum Super-Homem que chega pra dar um jeito nas pendências no último momento. O que parecia ser o príncipe encantado da trama é desconstruído junto com esse conceito com uma brutalidade que deixa a gente querendo chorar, de tão desiludidas que as coisas ficam.
A maternidade também não é a coisa maravilhosa e linda, meta de vida de uma mulher, como a gente a vê sendo pintada por aí. As duas passam por essa experiência e com ambas os encantos são quebrados sucessivamente e nem tudo são flores.
No mais, a tetralogia é muito real porque ela não reproduz quadros utópicos em nenhum âmbito das vidas das personagens. Coisas que poderiam dar certo dão errado, homens que pareciam ser legais se revelam uns canalhas, metas não são atingidas, objetivos são frustrados, planos dão errado... Enfim, a vida acontece muito naquelas páginas.
Claro que existem coisas boas, mas elas são acompanhadas de muitas coisas ruins também e viver isso com Lenu e Lila era experimentar a crueza da vida através da escrita de Ferrante.
A tetralogia Napolitana não é uma série sobre machismo, sobre maternidade, sobre relacionamentos heteroafetivos frustrantes, sobre desigualdade social, sobre problemas, derrotas e vitórias. A tetralogia Napolitana é um série que, através da amizade visceral de duas mulheres, se faz uma série sobre mulheres e sobre o que é ser mulher nesse mundo, e por isso ela engloba todas as outras categorias que citei acima. Ela relata a vida cotidiana feminina com todas as suas dores, com todas as dores que são habituais a nós em casa, na rua, no trabalho, no lar, na carreira, em nosso próprio corpo, com os filhos, os companheiros amorosos, a família, os chefes, etc, tudo nas sociedades ferradas em que as protagonistas e nós vivemos.

''Falei de como tinha observado em minha mãe e nas outras mulheres, desde menina, os aspectos mais humilhantes da vida familiar, da maternidade, da sujeição aos homens. Falei de como, por amor a um homem, era possível chegar a manchar-se de toda a infâmia possível perante outras mulheres, perante os filhos. Falei da relação difícil com os grupos femininos de Florença e de Milão e, ao fazer isso, uma experiência que eu tinha subestimado tornou-se de repente importante, descobrir em público quanto aprendera assistindo àquele esforço doloroso de escavação. Falei de como tinha tentado desde sempre, a fim de me impôr, ser um homem na inteligência - percebi-me inventada pelos homens, colonizada por sua imaginação, iniciava minha fala assim todas as noites''

É uma história sobre nós, que numa página somos Lenu e na outra somos Lila, e é por isso que devemos lê-la.
Foi muito fácil me envolver, me enxergar naquelas duas e eu posso afirmar que não sou a única (que provavelmente a coisa vai te atingir de um jeito semelhante, se você der uma chance à série) porque Ferrante sabe o que é ser mulher e soube passar essa consciência para esses livros. Nos enxergamos em Lenu e Lila porque é pra ser assim mesmo.
Esses livros são também muito sobre desigualdade porque temos duas garotas com potencial, uma com um provável potencial superior, a número um e a número dois (por mais problemáticos que sejam esses títulos; desculpa pela falta de acervo linguístico), e ambas poderiam, sem sombra de dúvida, conseguir muito na vida, poderiam se destacar em suas áreas como ninguém, poderiam ter seus nomes perpetuados pela primazia das carreiras que construiriam. Ninguém duvidava de Lila e Lenu.
Mas Lenu tem a chance de continuar seus estudos, e Lila não; por falta de dinheiro, os sonhos da nossa número um são interrompidos no fundamental e ela sai da escola pra nunca mais voltar.
Lenu passa no vestibular, se muda para outra cidade pra cursar uma universidade, seus estudos se desenvolvem, sua carreira toma forma e ela só cresce. Enquanto isso Lina ainda está detida (por uma aparente força maior) na Nápoles de sua infância, com uma vida de esposa e sob as ameaças constantes dos irmãos Solara, sem muitas perspectivas de um futuro promissor quando seus avanços são coibidos pelo marido, pelo irmão, pela família que não a apoia, por um bairro que a detesta por se destacar e ser visivelmente superior a tudo aquilo. 
A situação de Lila se desenvolve e as coisas melhoram um pouco em dado ponto da série, mas as vidas dela e de Elena não são comparáveis, especialmente se olharmos para tudo o que Lila também conseguiria se tivesse tido as mesmas chances.

''Compreendi que eu tinha chegado lá cheia de soberba e me dei conta de que - de boa-fé, claro, com afeto - fizera toda aquela longa viagem sobretudo para lhe mostrar o que ela havia perdido e o que eu havia conquistado. Mas ela percebera isso desde o momento em que eu tinha aparecido em sua frente e agora, arriscando-se a atritos com os colegas de trabalho e a multas, estava reagindo e me explicando que de fato eu não tinha vencido coisa nenhuma, que no mundo não havia nada a ser vencido, que sua vida era cheia de aventuras diversas e insensatas assim como a minha, e que o tempo simplesmente deslizava sem nenhum sentido, e era bom encontrar-se de vez em quando só para ouvir o som disparatado do cérebro de uma ecoando no som disparatado do cérebro da outra.''

Era triste, muito triste ler isso, sabe? Ver todo esse potencial indo pro ralo porque um mundo errado e uma vida difícil não deixaram as coisas acontecerem. Por mais que Lila tenha conquistado coisas e tenha sido o destaque no que quer que ela se propusesse a fazer, sabemos que muitas coisas boas, muitas possibilidades e muitos outros possíveis futuros foram abafados e brutalmente castrados em sua narrativa. Isso é triste e dói.
A série também trabalha bastante a questão da síndrome do impostor, talvez melhor do que qualquer outro ponto abordado nela (a maneira com que Ferrante subverte o próprio título do primeiro livro, A Amiga Genial, e transmuta nossa maneira de enxergá-lo, quase como uma peça pregada no leitor, é linda de ver), através da oponência que se estabelece entre as duas amigas, e isso é muito relacionável porque todas temos uma Lila, facilmente nos vemos sendo Lenu e provavelmente somos a Lila de alguém também, por mais absurda que essa ideia nos pareça, a princípio.
Lenu, como dito, é a menina super esforçada que faz por merecer. Todas as suas notas, os seus diplomas, o sucesso de sua carreira, as críticas positivas dadas a cada livro, tudo isso é mérito dela. Ela é inegavelmente excepcional. Mas por toda a vida ela anda ao lado da sombra que diz que, não importa quanto esforço ela estiver disposta a fazer, jamais se equiparará à genialidade inata de Lila. Lenu vive num estado de contínua perturbação que é alimentado pelo questionamento "o que Lila teria conseguido e feito melhor que eu, quão além de mim ela teria chegado se tivesse tido as mesmas oportunidades?".

''Minha vida me leva a imaginar como teria sido a dela se por acaso lhe houvesse cabido aquilo que me coube, que uso ela teria feito de minha sorte. E sua vida se apresenta continuamente na minha, nas palavras que pronunciei, dentro das quais há muitas vezes um eco das suas, naquele determinado gesto que é uma readaptação de um gesto dela, naquele meu a menos que é assim por um seu a mais, naquele meu a mais que é a caricatura de um seu a menos.''

Eu me frustrava muito com isso, porque me via muito nisso. Era desanimador ver Lenu tendo notas ótimas, sendo aprovada no vestibular, publicando livros, ganhando notoriedade e a admiração do público, sendo lida e ouvida por milhares de pessoas e conquistando tudo que uma Mulher de Sucesso em sua posição almejaria pra logo em seguida se sentir diminuída e indigna com um comentário de Lila, com a constatação de que a amiga avançou a seu próprio modo ou com sua própria sabotagem mental que dizia que Lila a superaria no que quer que fosse - inclusive em seu principal ofício, por profissão e paixão, a escrita - quando quisesse, assim, num estalar de dedos.
Lenu conseguiu quase tudo o que poderia querer, principalmente dentro de sua carreira, mas com uma palavrinha só de Lila, com um olhar, ela murchava e relegava seus méritos ao posto de ocorrências do acaso e sorte.
Isso me entristecia demais, porque é exatamente o que eu faço comigo quase todo santo dia. Eu sentia todos esses sentimentos de inferioridade e todo o peso corrosivo de não ser a número um sobre minhas próprias costas. Por isso eu acabava torcendo muito pela Lenu. Torcia para que as coisas dessem certo, simplesmente. Torci até pra que Aquele Seu Relacionamento tivesse um final feliz (desculpa por trair o movimento, pessoal), mesmo que as coisas cheirassem mal desde o início. E quando o final feliz se transmutou num fiasco homérico, e Lila, de certa forma, superou Lenu mais uma vez, eu fiquei arrasada pela Lenu, ressentida pela maneira com que Lila sempre conseguia se sobressair, até nisso, até na hora de ter a paixão do boy.

''Não se ofenda, Lenu, você é excelente, você trilhou um longo caminho, você apareceu nos jornais, você é o orgulho de todos nós que a conhecemos desde pequena. Mas - e estou certo de que você vai gostar e estará de acordo com o que digo agora, porque tem afeto por ela - Lina tem uma coisa viva na cabeça que ninguém tem, uma coisa forte, que salta pra cá e pra lá e nada consegue segurá-la, uma coisa que nem os médicos sabem ver e que, na minha opinião, nem mesmo ela conhece, apesar de tê-la desde o nascimento - não a conhece e não quer reconhecer, vejam que cara malvada está fazendo neste momento -, uma coisa que, se ela não estiver de bom humor, pode causar muitos problemas a qualquer um, mas, quando está de bom gênio, deixa todo mundo boquiaberto.''

Eu fui muito Lenu. Fui Lenu até demais.
Mas é naturalmente mais fácil nos enxergarmos na xará da escritora, porque ela é nossa narradora-personagem e é o partido dela que somos impelidos a tomar por vermos a situação através do seu ponto de vista do início ao fim. Ainda assim, minha relação com Lila também foi mais positiva que negativa, embora tenha sido sim uma relação de amor e ódio.
Ela tem atitudes bem mesquinhas em vários momentos e é uma pessoa dificílima de tolerar (também por isso continua sempre tão incompreendida, solitária e intocável) - tem o que gostamos de chamar de personalidade difícil/forte: ela se impõe, confronta as pessoas quando se sente contrariada, diz o que pensa, nunca mente para amenizar situações e diálogos e bate de frente com todos quando julga necessário, sejam homens ou mulheres. Nada nela insinua submissão e subserviência, tudo é força, ímpeto, tiro porrada e bomba, se preciso for. Lila não leva desaforo pra casa.

''Sua rapidez mental lembrava o sibilo, o bote, a mordida letal. E em seu aspecto não havia nada que agisse de corretivo. Estava sempre desgrenhada, suja, com cascas de ferida nos joelhos e cotovelos que nunca saravam. Os olhos grandes e vivíssimos sabiam se transformar em fissuras atrás das quais, antes de qualquer resposta brilhante, havia um olhar que parecia não só um pouco infantil, mas talvez nem humano. Todo movimento dela dizia que fazer-lhe mal não serviria para nada, porque, não importava como as coisas saíssem, ela acharia o modo de fazer ainda pior.''

Haviam momentos em que eu ficava com muita raivinha dela, do fascínio desmedido que ela exercia sobre Lenu, do poder que ela tinha na amizade das duas, da forma com que ela conseguia manejar as coisas para que tudo saísse dentro de seus conformes. Mas basta um pouco de empatia para que entendamos Lila também.
Ela é a personagem que mais sofre na série, e também de quem é exigida mais resiliência - uma resiliência que ela consegue sustentar sem pestanejar em praticamente nenhum momento. Lila também fascina o leitor quase na mesma medida em que torna cativos os pensamentos de Lenu. Ela é uma personagem complexa que nunca (quer dizer, quase nunca, não é mesmo?) se deixa revelar de todo e permanece sempre encoberta por uma névoa de mistério, visto que não temos acesso direto a seus pensamentos, como é com Lenu. Através daquela narrativa esmiuçante, vamos descobrindo e investigando Lina com a mesma fixação de nossa narradora.
E enquanto vamos destrinchando aquelas histórias e personagens Lila vira nossa amiga também, alguém que nos inflama sentimentos tão controversos e conflituosos quanto em Lenu, que ora amamos, ora detestamos, ora torcemos por, ora queremos que quebre a cara e não seja a número um pelo menos uma vez.
Eu também fui Lila na vontade inveterada de ser a primeira, no inconformismo com o mediano, na competição predatória que ela travava com a amiga, mas também consigo mesma. 
Eu tenho sérias, sérias dificuldades em me contentar com qualquer coisa que não seja o primeiro lugar no que me é relevante. Por mais que eu me irritasse quando Lila era suficientemente mesquinha para querer emplacar Lenu até na droga do grego, diminuindo a amiga sutilmente com alguns comentários quando dela nem era mais exigida essa disciplina e da outra sim, eu percebia segundos depois que era exatamente algo que eu faria (não os comentários, mas a competição velada), que pegar livros da disciplina pra estudar por conta e poder ostentar aquele conhecimento que a outra adquiriria por intermédio dos professores, como Lila faz, seria uma atitude que condiziria perfeitamente com a minha pessoa. Percebia que eu seria orgulhosa e vil no mesmo nível. Eu me via muito em Lila também.

''Ela era assim, rompia equilíbrios somente para ver de que outro modo poderia recompô-los.''

A experiência de ler a tetralogia foi quase torturante porque eu me identificava de maneira tão inescusável em Lenu e Lila que chegava a ser constrangedor. Era como entrar numa sala de espelhos e não achar nada bonito o que eu via refletido neles, em cada canto. Era isso em todas as páginas, não havia para onde fugir daquelas duas personagens que me confrontavam com vergonhas que também eram minhas.
Lila não suporta não ser a número um, e embora sua genialidade nos pareça algo natural que aflora sem esforço, Ferrante nos oferece pequenas mostras de que ela, a personagem intocável a respeito de quem só podemos especular (visto que não temos acesso direto a ela, sem uma visão turvada pelos olhos de Lenu) também se sente ameaçada pela proeminência da amiga.
Outra coisa interessante é que Lila também sempre foi a maior incentivadora de Lenu, aquela que cobrava a amiga e verdadeiramente exigia que ela se destacasse entre os demais. Foi ela que incutiu na cabeça de Lenu, lá no primeiro livro, quando ainda eram crianças, que elas deveriam crescer para escrever um livro e enriquecer por intermédio disso. A ideia era que as duas virassem escritoras tão prestigiadas quanto a autora de Little Women, mas quando as oportunidades de educação de Lila são ceifadas, ela se vê impossibilitada de cumprir a meta de sua infância e deposita todas as esperanças no brilhante futuro de Lenu, que ela quer assegurar com as próprias foças e recursos, se preciso (e possível) for.
Lila não se sente tão amiga genial assim, e não dá a si mesma o título e todo o mérito que a outra lhe atribui - tal como Lenu, que o tempo todo também se sente diminuída pela amiga. Parece familiar?
Uma projeta na outra os próprios ideais de excelência e numa autoavaliação são incapazes enxergá-los em si.
A maneira com que a autora desconstrói e esmiuça o complexo de inferioridade e a síndrome do impostor de Lenu, ainda no primeiro livro (posteriormente e gradativamente vamos percebendo esse mesmo prisma de cores se refletindo na autoimagem e na personalidade de Lila), é uma das coisas mais bonitas de toda a série.

''Não sabia nada além disso, mas na escola eu aprendera a convencer os outros de que eu sabia muita coisa.''

Ferrante não erradica de todo esses sentimentos do espectro emocional da personagem, porque nossa narradora continua com uma confiança frágil durante todos os quatro volumes, mas a autora mostra com clareza, pelo menos para nós, os leitores e as leitoras, as mulheres com amigas, que a perfeição é um mito e que todas somos tanto amigas geniais quanto aquelas que se sentem eternamente relegadas ao segundo lugar. Somos todas Lenu e Lila, juntas, um pouco aqui, um pouco ali.
Doeu muito ler essa história, porque há muita realidade nessas páginas e essa não é a primeira coisa que queremos ver quando recorremos à ficção, ainda mais quando falamos de uma ''história de amizade''. Pra que buscar desgraçamentos em romances se eles nos sobram na vida real?
Doeu ver as coisas dando errado, doeu ler Lenu sendo traída, doeu ler Lila apanhando do marido, doeu ler que a maternidade às vezes ferra a vida das mulheres, doeu ler que o mundo é desigual, doeu ler que o potencial de Lila escorria porque sua família não tinha dinheiro o suficiente para pagar por seus estudos, doeu ver que uma mulher incrível como Lenu se deixava abalar por homens de merda que apareciam em seu caminho, doeu ler a tragédia que ocorre com a menina do livro da menina perdida, doeu ler e ser lembrada de novo do quão pequenos somos em nossa humanidade e que nada está sob nosso controle.
Doeu chegar à parte final do último livro, intitulada História do Rancor, e perceber com pesar que sim, é verdade, nossas personagens têm muitos motivos para serem rancorosas diante da vida. Doeu acompanhar aquele relato tão minucioso e humano sobre uma amizade que nasce, cresce e envelhece, nem sempre de um jeito bom, às vezes de maneiras horríveis, e imaginar quantas histórias reais assim o mundo vive todo dia e tem pra nos contar. Quantas Lilas e Lenus existem por aí vivendo tudo isso? Desejo toda a sorte do mundo a elas, especialmente a sorte que fugiu dessas nossas protagonistas.

''Só permitia distrair-se, se é que se pode dizer isso, com outro motivo qualquer de sofrimento. Uma nova dor agia sobre ela como uma espécie de antídoto, tornava-se combativa, determinada, era como alguém que sabe estar se afogando, mas mesmo assim move braços e pernas para se manter à tona.''

Doeu do início ao fim, sabe? Essa foi uma daquelas leituras que exigiam que eu parasse de vez em quando pra me fazer lembrar que calma, Carolina, são só personagens, elas não existem de verdade, não exatamente assim, para de sofrer tanto, pelo amor de Deus, se recompõe criatura, isso é ficção!, porque eu já estava com o coração saltando pela boca de tanto sentir.
Quando terminei o quarto e último livro, eu estava no meio do meu expediente no trabalho, dentro de uma sala de aula de fundamental numa escola municipal da minha cidade, rodeada por criancinhas de 8/9 anos. Eu fechei o livro sobre a mesa e fiquei olhando aquelas crianças gritando e fazendo bagunça com sua euforia habitual e pensando no quanto meus sentimentos contrastavam ridiculamente com os delas porque eu estava simplesmente arrasada. O meu sentimento era aquele plmdds, eu preciso chorar pra extravasar tudo isso mas as lágrimas simplesmente não vêm, socorro.
Olhei pela janela, pra um prédio verde água que eu encaro todo dia no meu momento olhar pela janela e refletir, só pra deliberadamente e num autoflagelo assumido me afundar mais naquele mar de emoções em que Ferrante me submergiu desde a primeira página da tetralogia Napolitana, desde que entramos naquele bairro da Itália que exerce sobre a vida das meninas o poder de uma entidade divina.
Esses livros realmente arrasaram comigo.
Não me entenda mal, o final de Ferrante é simplesmente incrível. Ele nos deixa embasbacados encarando aquelas últimas linhas, aquele último paragrafozinho que é pequeníssimo mas diz TANTA coisa. O final é genial. Mas eu também me senti meio traída, sabe? Eu torcia por Lila e Lenu, juntas, sempre juntas, por favor, é só isso que eu peço!

''Recordei as mil coisas odiosas pelas quais tínhamos passado e deixei que a solidariedade reconquistasse força. Que desperdício seria, pensei, estragar nossa história dando espaço excessivo aos maus sentimentos: os maus sentimentos são inevitáveis, mas o essencial é represá-los.''

Mas é claro que aquela escritora que me sacaneava enquanto eu tentava descobrir a razão de cada título diferente (eles têm um duplo significado bem sorrateiro; boa sorte tentando descobrir) e falhava até que ela me desse a informação de bandeja também iria pregar essa peça final em mim, tal como Lila precisava pregar uma peça final em Lenu, precisava apresentar um último ato que mudaria o significado de tudo, ampliaria nossa visão sobre todos os quatro livros e nos deixaria perplexos junto com nossa narradora.
Não posso falar muita coisa pra não revelar mais spoilers do que já consegui expor nesse texto até aqui (ainda tem alguém aí?). Mas mesmo com a maravilhosidade estonteante e arrasadora daquele final, a melancolia branda e contínua, que se mantia com a constância de um rio calmo mas firme, que eu senti do início ao fim lendo essa série permaneceu. Continua aqui.
Vou concluir repetindo o que eu disse naquele início longínquo (acho que já tô há mais de uma semana escrevendo esse texto): leituras como a que se faz possível com a tetralogia Napolitana, essas que nos envolvem com a aura mística que só livros e autores excepcionais conseguem, são as melhores. São as mais incríveis. Sempre vão ser. Mas justamente por isso elas são também as que mais doem. Doem pra valer. Doem demais. Doem pra caramba. Doem, doem, doem.
Leia a tetralogia Napolitana. Mas saiba que vai doer.
Ainda tá doendo aqui.
''DIFERENTEMENTE DO QUE OCORRE NOS ROMANCES, A VIDA VERDADEIRA, DEPOIS QUE PASSOU, TENDE NÃO PARA A CLAREZA, MAS PARA A OBSCURIDADE.''

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