17/09/2018

Trilogia Bill Hodges

Do Stephen King
Como o título anuncia, nessa trilogia conhecemos o ex-detetive Bill Hodges, preso a uma rotina inóspita e depressiva desde sua aposentadoria, encerrada com um caso sem conclusão, e que começa a flertar com o suicídio, agora que sua vida parece não ir em direção alguma além da velhice.
Mas então o Assassino do Mercedes, aquele que escapou dos dotes policiais de Hodges e permaneceu foragido, retorna, e agora o detetive tem uma nova chance de pegar o criminoso, obsessão que o prende ao mundo.

Mr. Mercedes
No primeiro volume conhecemos o crime que deu a Brady Hartsfield, um cara fracassado que trabalha com suporte técnico de computadores e que vive com a mãe, com quem tem um relacionamento sexual bem degradante e doentio, o apelido de Assassino do Mercedes: ele roubou um carro da marca e dirigiu contra uma multidão que aguardava na fila de uma feira de empregos, matando oito pessoas e deixando dezenas de feridos em estado gravíssimo, fugindo sem deixar rastros.
Meses depois nos deparamos com Hodges, responsável pelo caso na época, agora aposentado e deprimido com o fracasso.
Mas Brady começa a se comunicar com ele através de um site anônimo, vangloriando-se pela fuga e sucesso ao destruir a vida daquelas pessoas e tentando levar o ex-detetive a cometer o suicídio no qual ele vem pensando há tempos.
Através dessas trocas de mensagens, Hodges vê a oportunidade de caçar o assassino novamente, e acaba contando com a ajuda de Jerome, seu vizinho adolescente charmoso e inteligente, a única pessoa com quem o detetive mantinha algum contato humano desde a aposentadoria, e Holly Gibney, uma quarentona problemática e com transtorno comportamental que se revela muito sagaz, prima da dona do Mercedes usado no fatídico crime, que acabou cometendo suicídio.
Juntos, os três acabam tendo que mergulhar na mente doentia de Brady na tentativa de rastrear o assassino antes que ele cometa um novo crime terrorista de proporções homéricas.
Mais pra frente eu vou falar sobre a minha opinião sobre os coadjuvantes bonzinhos, mas digo desde já que para mim o melhor do livro foi Brady, sem dúvida.
Tenho algumas questões com os vilões do King e fui ler com um pé atrás, mas conforme o enredo ia avançando eu não conseguia resistir ao envolvimento (quase fascínio) com a história degradante de Brady. O autor nos oferece um contexto muito bem esmiuçado da vida do vilão, e o histórico dele é tão atipicamente perturbador e repugnante, além de bem desenvolvido, que é difícil não se deixar encantar, sabe?
A relação doente que ele tem com a mãe, a relação doente que ambos tinham com o irmão deficiente, a forma com que ele enxerga o mundo, de maneira vazia e privada de qualquer sentimentalismo... É tudo tão bizarro de um jeito tão convincente que envolve a gente, sabe?
Brady cativou meu ódio, se é que isso existe.

''A ideia que Brady Hartsfield tem de bons vizinhos seria não ter vizinho nenhum.''

Achados e Perdidos
O segundo volume da trilogia é uma espécie de interlúdio. Ele é quase inteiramente independente dos outros livros da série e você pode lê-lo sozinho sem que isso ofereça qualquer obstáculo para sua compreensão. O único porém é que você acaba fisgando alguns spoilers do volume I no processo...
Aqui conhecemos outro vilão típico, Morris Bellamy, um leitor aficionado que mata seu autor favorito por não gostar do desfecho que ele dá ao protagonista de sua série mais aclamada, e rouba diversos manuscritos e dinheiro do escritor. Décadas depois, Peter Saubers, um garotinho que também é leitor assíduo, acha o esconderijo no qual o assassino enterrou os livros e o dinheiro antes de ir pra cadeia por outro crime (estupro). Depois de ser solto (porque oh, a Justiça, essa coisa infalível) Bellamy descobre o paradeiro de seu tesouro e vai deixando uma trilha de sangue enquanto caça Peter.
Hodges entra na história porque agora tem uma agência investigativa com Holly, a Achados e Perdidos, destinada a rastrear coisas perdidas (jura?), e o garoto acaba recebendo a ajuda dele (por coerção), por interferência de sua irmã, amiga da irmã de Jerome, que leva o caso ao ex-detetive.
O Assassino do Mercedes só entra na história através de uma conexão meio apelativa com o garoto, já que o pai de Peter ficou invalido ao ser atropelado no ataque de Brady na fila da feira de empregos, condenando a família à pobreza, o que acaba fazendo com que Peter use o dinheiro ilícito para ajudar anonimamente os pais.
O melhor desse livro é que ele é um livro sobre leitores, e isso é muito legal porque GENTE COMO A GENTE (tenho o palpite de que você não estaria lendo essa resenha quilométrica se não gostasse de livros, então tomo a liberdade de te incluir nesse caps lok). Tanto Bellamy quanto Peter são leitores assíduos, e isso possibilita que o autor desenvolva considerações sobre todo esse universo que acabam falando muito com quem gosta de ler. É como acompanhar alguém ecoando sentimentos que você alimenta sobre o assunto, muitas vezes sem saber como expressá-los.
Não vou contar o destino de Peter, mas digo que no final do livro Brady aparece de novo, internado numa clínica em estado vegetativo graças ao desfecho do livro I, onde episódios muito perturbadores e inexplicáveis estão ocorrendo (entre eles o suicídio de uma enfermeira, como aconteceu com a dona do Mercedes roubado, não por coincidência), o que introduz o sobrenatural à trama.

''Para os leitores, uma das descobertas mais eletrizantes da vida era a de quem eles eram leitores, não apenas capazes de ler (o que Morris já sabia), mas apaixonados pelo ato. Desesperadamente. Incorrigivelmente. O primeiro livro a fazer isso nunca era esquecido, e cada página parecia trazer uma nova revelação, que queimava e exaltava: Sim! É assim! Sim! Eu também vi isso! E, claro: É o que eu acho! É o que eu SINTO!''
Último Turno
No último livro da trilogia descobrimos que Brady adquiriu poderes psíquicos que lhe permitem viajar através da mente das pessoas e levá-las a agirem de acordo com seus comandos malignos, causando uma onda de suicídios pelo país, que ocorrem especialmente entre vítimas suas do passado ou quase vítimas de seu último ato terrorista fracassado, que falhou graças à ação de Hodges, Holly e Jerome.
Não sabemos bem se o lado mediúnico de nosso vilão é aflorado como resultado dos experimentos ilícitos do neurologista com manias de grandeza encarregado por seu caso na clínica em que ele está internado em suposto estado vegetativo, ou se é tudo obra da já inflamada psicopatia de Brady; provavelmente uma junção dos dois fatores. Mas fato é que o cretino está invadindo o psicológico alheio por via de aparelhos eletrônicos, levando as pessoas a fazerem coisas terríveis enquanto aparenta ser só mais um vegetal esquecido na clínica médica, e apenas Hodges, Holly e Jerome atentam à pista dele, já que conhecem a mente doentia de Brady mais intimamente e são os únicos que conseguem ao menos considerar a hipótese de que essa suspeita não seja uma insanidade completa.
Esse é o livro em que temos mais acesso à perspectiva de Brady e isso pode ser especialmente atrativo pra quem gosta de olhar através dos olhos do vilão.
O assunto base desse volume é o suicídio, já que é essa a arma usada por Brady pra destruir as pessoas, uma vez que não tem autonomia e integridade física (durante um tempo, pelo menos) suficientes pra sair atirando carros contras os cidadãos em filas por aí.
Mas não é a primeira vez que esse elemento surge na narrativa; desde o livro I Brady já vinha nos mostrando sua inclinação a ser instrumento do suicídio alheio, ao ter convencido a dona do Mercedes roubado e usado na morte de diversas pessoas a se matar com o peso da culpa, e por ter tentado fazer Hodges seguir o mesmo caminho. Mas é nesse livro que o vilão se consagra como o Arquiteto do Suicídio e nosso trio de benfeitores às avessas precisa correr contra o relógio pra conseguir domar Brady não só dentro de uma cela ou atirado numa maca, mas também na subjetiva dimensão psíquica.

''-Os motivos nunca importam, porque o suicídio vai contra todos os instintos humanos, e isso o torna insano.''

Aqui eu paro de pormenorizar o enredo dos três livros e falo sobre minhas impressões gerais sobre a trilogia.
Devo dizer que eu estava com um pé atrás desde o começo. O crime que nos introduz à trama, o ataque terrorista em que um Mercedes é dirigido contra uma multidão numa fila, matando oito pessoas, me pareceu... sem graça demais. Eu acho mais interessantes, mais emocionantes (na ficção, pelo menos, não sei), crimes em que o assassino interpela suas vítimas de forma mais íntima e direta, muito diferente de jogar um carro contra elas e sair andando sem nem ver quem ficou atirado no caminho, entende? Esse intimismo macabro torna as coisas mais instigantes, ao meu ver. Então a ideia de um Assassino do Mercedes não me cativou, e sei que se o crime tivesse sido outro minha recepção aos livros seria um pouquinho diferente.
Os vilões masculinos do King também sempre me parecem muito parecidos, se encaixam num arquétipo fácil de delimitar: são sempre racistas completos, machistas completos, homofóbicos completos e gostam de passar seu tempo tripudiando a humanidade em toda oportunidade possível, porque obviamente são muito melhores do que todo mundo. Essa semelhança gritante se nota até mesmo em Brady e Morris, na mesma trilogia. Então às vezes eu tenho a impressão de estar ouvindo a mesma fita arranhada.
Só que o King sabe desenvolver esses complexos, então é sempre interessante, até divertido, conhecer seus vilões. Eu adoro. Não foi diferente aqui.
Brady se faz especialmente interessante porque King não nos poupa de nenhum detalhe sobre seu passado sombrio na hora de nos contextualizar na trajetória desse cara desprezível. A história de Brady é muio bem contada, e isso deixa as coisas muito boas.
Alguns aspectos que me deixaram meio avessa se apresentam em Holly e Jerome. Eu gostei muito da Holly, mas alguma coisa nela simplesmente não me convenceu. Por vezes parecia que o autor estava tão preocupado em fazer com que ela fosse tão, tão peculiar e diferente para que a trama pudesse ser mais interessante, que ele forçava a barra, tentando jogar na nossa cara o tempo todo o quanto Holly Gibney é uma mulher problemática!!! (e eu meio que posso falar com propriedade sobre a questão ser problemática, se é que você me entende, haha)(droga).
O Jerome também tem umas questões meio dúbias, como uma aparente (porque não ficou muito claro, não pra mim) dupla personalidade que é jogada na trama sem nenhum desenvolvimento ou explicação, tudo para reforçar a suposta peculiaridade daquele trio improvável.
Também acho que a jogada com suicídio funcionaria melhor em um livro individual que focasse inteiramente nessa faceta do vilão, sem o desvio das questões dos volumes I e II da trilogia, porque é uma ideia interessante que acaba sendo abordada no meio de uma muvuca que turva as coisas.
(Muita gente também argumentaria que isso é se valer de um problema emocional gravíssimo que aprisiona muitas pessoas, fazendo com que uma abordagem em prol da ficção seja irresponsável, mas perdão, não tô olhando as coisas através desse viés.)
Tem alguns outros elementos para os quais eu também torci o nariz, mas não vou me alongar mais nisso porque são todas impressões muito pessoais. Eu li algumas resenhas sobre a trilogia e não vi uma pessoa sequer levantando essas críticas, o que mostra que cada leitor é um leitor e esses últimos parágrafos podem parecer estapafúrdios se e quando você der uma chance aos livros.
Não viraram favoritos meus e não foi uma trilogia policial que me conquistou como as queridinhas conseguiram, mas essa tríade está muito longe de ser ruim. Também vale constar que o autor não se aventura tanto no gênero policial, então é uma ótima chance de observar King desenvolvendo essa faceta à qual não temos tanto acesso, e ele não fez feio.
Outra coisa divertida é pescar as dezenas de referências à cultura pop que o autor faz ao longo dos três livros. SK parece ser um cara muito antenado no currículo midiático, porque rolam menções nem sempre honrosas que vão de Justin Bieber a Pretty Little Liars, entre outras. É bem legal ler sobre personagens que se situam numa realidade relacionável à nossa, com direito a críticas aos rumos duvidosos que tomou a série Dexter e àquela tristeza constrangida ao falar de Cinquenta Tons de Cinza, por exemplo. ;)
E apesar de todas as críticas pobres que eu pontuei, devo dizer que ler os livros foi delicioso, a leitura passou voando e correu com fluidez. King sabe nos entreter muito bem, e esse dom ele domina aqui mais uma vez. Então os livros são uma ótima pedida pra um momento de lazer ou para aquela fugida sorrateira da vida que você está precisando. Eu posso garantir que eles não vão te fazer dormir, e jogo muitas fichas (mas não todas, porque poucas derrotas impulsivas no poker já serviram de lição) apostando que você vai se divertir.

''PARA OS JOVENS, TRAGÉDIAS QUE NÃO ACONTECEM NÃO PASSAM DE SONHOS.''

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